sábado, 4 de outubro de 2025

O imaginário pós nazista

Em 1945, com o avanço de tropas aliadas sobre a Alemanha, chegava ao fim o teatro ocidental da Segunda Guerra Mundial. Os soviéticos por um flanco e os demais membros da coalizão aliada por outro. Até o Brasil participou desse processo, embora tenhamos ficado mais ao sul, não chegando na hora mais escura em Berlim. 

30 de abril daquele ano é a data mais importante, não pelo fim em si das hostilidades, mas, pelo fim da vida de Adolf Hitler, cuja morte se registra nesse dia, ainda que muitos insistam na hipótese de que ele não tenha se matado e tenha fugido. Não conheci pessoa que estudasse ou acompanhasse o tema a sério que levasse em consideração a hipótese de que o führer tenha saído com vida de Berlim. É uma hipótese que não combina com a ideia de um final heróico. É ideia de um Hitler fraco, covarde e que, mais importante ainda, não se apoia nas evidências históricas.

Oitenta anos depois e o nazismo e a vida de Hitler ainda são assuntos de momento, palpitantes. 

Quando o assunto aparece em um noticiário é como se a ameaça nazista estivesse tão viva como em 1933, ano em que o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães subiu ao poder, na República de Weimar. 

São comuns reportagens mostrando alguma pessoa, normalmente um colecionador de itens históricos relacionados à Segunda Guerra Mundial, detido pela polícia, que reúne os objetos e "monta a cena", ou seja, os dispõe de maneira a dar a impressão ao telespectador de que se trata de alguém perigoso, à margem da sociedade, um homem da paleolítica que foi pego, um perigo iminente que rondava a sociedade livre. Sim, sempre um homem perigoso com uma machadinha de cortar bifes, uma bandeira, umas fotos e meia dúzia de livros. Enquanto isso, a onipresença de prisões de bandidos, ligados ou não às facções criminosas que co-controlam este país não chocam mais quando aparecem na imprensa. Uma prisão de meia tonelada de drogas, armas de grosso calibre, explosivos ou o estouro de um cativeiro chamam muito menos a atenção da imprensa do que alguém que é detido por uma investigação de algum crime de opinião ou de ter memorabília militar do período nazista. Qualquer alusão ao nazismo é pior do que qualquer outro delito. Não a toa dizem que nas cadeias, quando um skinhead é preso, ele fica em um pavilhão que reúne criminosos considerado irrecuperáveis pela própria bandidagem, como parricidas, pedófilos e outros psicopatas. 

Porém, via de regra, para chegar até a cadeia é preciso ter o fato criminoso, que, normalmente não existe nesses casos mostrados na TV. A imprensa se alimenta da atenção que o público dá à essa temática. Ser nazista no Brasil é um crime que está assentado na lei 7.716/1989, que traz a seguinte ideia: que é crime praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa – ou reclusão de dois a cinco anos e multa se o crime foi cometido em publicações ou meios de comunicação social. Diz ainda a legislação: que fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.

Ou seja, nós, os historiadores estamos resguardados em nossos propósitos investigativos e de estudo do tema. Nossa finalidade não é a divulgação política do assunto, mas a discussão intelectual e acadêmica sobre a questão, amparados na liberdade de expressão, esse princípio tão humilhada, abatido e maltratado no Brasil, que ainda resiste em permanecer na legislação nacional. 

Foto mostra como uma cena é montada pela polícia para a imprensa. O que vemos? Umas facas, como milhões de brasileiros têm em casa, umas cordas e um livro que oficialmente não tem sua publicação vedada no Brasil, desde que seja para finalidades de estudo. Esse caso específico é dessa semana no estado do Mato Grosso.

Não tenho acesso à dados e nem sei se eles existem disponíveis, mas, seria capaz de apostar que a maior parte dos crimes de racismo registrados no Brasil não passa nem perto de qualquer relação com o tema histórico do nazismo. O Brasil é um país de aberto conflito racial. Por mais que pensadores tenham teorizado sobre como o país lidou em sua história com o melting pot de nativos americanos, brancos e africanos, teoria nenhuma pode suplantar a realidade. E a realidade é a violência e o conflito, onde uma raça foi conquistadora e dominadora e assimilou uma outra, a dos indígenas, que foram em um certo momento escravizados e depois reduzidos à servidão ou ainda isolados, como parte deles se encontra hoje. A raça branca ainda trouxe para a América os negros de África, comprados naquele continente onde já eram escravizados de seus patrícios, inclusive escravizados por muçulmanos naquele continente, matéria já fartamente debatida e registrada. O tráfico negreiro transatlântico, controlado por mercadores judeus e conversos é outra marca desse processo. A única assimilação que o ocorreu, e é estupidez negar, é aquele da cobiça: o sexo entre brancos e negros ou indígenas gerou uma massa de gente parda, que pode ter se diluído mais ainda com outros brancos, sobretudo após o século XIX e terem "embranquecido". De qualquer forma, o hoje registra o racismo entre negros e brancos, ou seja, há conflito racial no Brasil. Esse conflito não passa pelo tema ou pela discussão do nazismo. 

A maneira como sempre querem associar racismo ao nazismo, ainda quando o nacional socialismo é um aspecto marginal, colateral, chama a minha atenção. Considero que isso é uma estratégia da imprensa para obter impacto de audiência. Estivéssemos nos tempos em que a imprensa escrita em papel ainda era relevante eu diria que isso é feito para vender jornal ou revista. Hoje é para conquistar engajamento ou views. A imprensa não trata o tema do nacional socialismo de outra forma senão de maneira sensacionalista. Aqui no Brasil ou em outros países, especialmente nos Estados Unidos, há uma eterna exposição de sobreviventes de campos de concentração. O historiador americano judeu Norman Finkelstein já criticou essa super exposição como algo mercadológico, como mais uma atração para o cinema de Hollywood ou para a imprensa, que obtém bons índices quando exploram essa temática. Filmes sobre o nazismo ou sobre campos de concentração chamam a atenção do público e vendem ingressos e publicações. É uma questão comercial, ao fim e ao cabo, essa super exploração. A imprensa não parece se preocupar da mesma forma com temas históricos violentos semelhantes, como os relacionados a outras guerras do século XX. Nada é tão paradigmático para a imprensa comercial ou para a mídia contemporânea como a Segunda Guerra Mundial. Tenho a impressão que uma reportagem na imprensa brasileira sobre nossas revoluções, verdadeiros conflitos cívico militares, como o Golpe de 1930, a Revolução de 1932, o 31 de março de 1964 ou mesmo a própria participação brasileira na Segunda Guerra Mundial chamam tanto a atenção da imprensa quanto os temas ligados diretamente à Adolf Hitler, o nazismo ou a morte de judeus na guerra. A participação brasileira no conflito chama atenção da comunidade de entusiastas do meio militar, historiadores, descendentes de veteranos da guerra, mas para a imprensa é como se fosse uma história a parte. Tenho a impressão que a imprensa brasileira acha que a FEB não lutou contra o Eixo. Que a relevante participação brasileira não teve importância. Nos importamos com filmes como O resgate do soldado Ryan ou Pearl Harbor, histórias relacionadas com o lado americano que participou na Europa. Não temos histórias interessantes ao público para serem contadas que envolvam a soldadesca brasileira que lutou na Europa? A imprensa brasileira acha que não. 

A imprensa e a educação escolar, que andam juntas de mãos dadas em todo o processo de formação intelectual da sociedade ocidental contemporânea, são as responsáveis por fermentar o imaginário popular, passados exatos oitenta anos do fim da Segunda Guerra Mundial. O tema do nazismo e de Hitler vende bem. É como falar de filmes de super heróis ou como falar de histórias épicas da Bíblia. É um assunto comercial. A imprensa mantém viva a apreensão sobre o tema como uma maneira de criar um clima propício para vender mais: ingressos para o cinema, assinaturas de plataformas de streaming, livros e revistas. No Brasil, revistas de temáticas históricas que tinham apelo popular e eram facilmente encontradas nas bancas eram aquelas que falavam de dois assuntos: maçonaria e nazismo. As abordagens sempre são de teor conspiratório. Aquele que lê buscava ali descobrir segredos dos poderosos. Nazistas e maçons são vistos como grupos poderosos que tramavam por mais poder, sempre agindo pelas sombras. Até hoje se você for em bancas de jornais e revistas que ainda subsistem, provavelmente encontrará publicações sobre esses dois temas. É o que vende. É o que o público está interessado. Ao contrário do nazismo, a maçonaria representa um interesse mais profundo, pois é assunto que raramente é abordado pela imprensa, ao mesmo tempo em que há mais lojas maçônicas no Brasil do que templos da Igreja Universal do Reino de Deus. 

Se as bancas de jornais, espécies em extinção, junto com as livrarias físicas, não tem mais muitas vendas de revistas sensacionalistas de divulgação histórica, a venda de livros sobre o nacional socialismo e Hitler continuam sendo relevantes. Sempre se pode encontrar novas publicações sobre o tema. Normalmente autores internacionais em traduções. Este ano li dois livros recentemente publicados no Brasil sobre o tema. O primeiro é Os monstros de Hitler (Editora Zahar, 2025), do historiador alemão Eric Kurlander. O segundo é Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranóica (Editora Crítica, 2022), de Richard J. Evans, um já consagrado autor de livros sobre o nazismo e a Segunda Guerra Mundial. Tenho mais outros três para ler que tratam desses temas do nazismo. Não tenho muito apreço pelo estudo das questões militares da Segunda Guerra, mas, pelos bastidores, pelo imaginário e pela cultura do período. Os dois livros, embora muito mais o primeiro, tratam de como as teorias da conspiração estão relacionadas ao nazismo e ao führer

Esses dois livros são de historiadores que eu chamo de ortodoxos. São dois acadêmicos. Não tratam aqui de abordagens levianas, de abordagens alternativas. Fazem um inventário bibliográfico clássico. 

Kurlander é professor na Universidade Stetson, da Flórida. Ele neste livro faz um passeio bem detalhado pelo cenário ocultista alemão do pré e o durante Segunda Guerra Mundial. O ocultismo, defino, como uma variedade práticas de artes alternativas de entendimento de fenômenos ou pretensos fenômenos humanos pararreligiosos, como a astrologia, o tarot, a cabala, a maçonaria, o rosacrucianismo, a antroposofia, a ariosofia, geomancia, mesmerismo, espiritismo ou a parapsicologia. Adoto aqui a expressão pararreligioso, para me referir à atitudes que tendem a ser praticadas não em um sentido religioso ortodoxo, dentro de uma doutrina cristã habitual, mas, que podem ser adotadas por indivíduos religiosos ou não, ainda que se busque com isso acessar a transcendência, obtendo revelações, falando com espíritos, tendo contato com outras dimensões, descobrindo aquilo que está oculto no saber religioso convencional. O ocultista me parece aquele sujeito inconformado com a maciez de um rito religioso tradicional e busca ir além, ou direto à fonte em busca de caminhos alternativos, daí ser paralelo à religião. 

A Alemanha, Kurlander aponta, é uma terra próspera para o progresso de doutrinas ocultistas alternativas. Cito, por exemplo, que foi ali onde a antroposofia nasceu, como a costela separada da teosofia por Rudolf Steiner, um pupilo da Madame Blavastky. A antroposofia existe até hoje, tem crescido e aumentado o número de seus adeptos no mundo todo. Hoje se apresenta de forma mais maneira, mais mansa, sem qualquer referência ao nazismo, ainda que o autor cite inúmeras vezes que antroposofistas ocuparam muitos cargos de destaque nos departamentos de pesquisa de ciências paralelas do Terceiro Reich. Não me parece que os antroposofistas brasileiros tenham qualquer simpatia por aspectos do nazismo. Nunca observei nada sobre isso. A Sociedade Antroposófica em São Paulo, ligada à colônia alemã paulistana não parece ter absolutamente nada a ver com o nazismo. O que Eric Kurlander demonstra, no entanto, é que abordagens heterodoxas de antroposofistas eram muito bem vistas por líderes nazistas, que procuravam dar voz à ciência alternativa, como, por exemplo, a homeopatia e o vegetarianismo. Rudolf Steiner e os antroposofistas, por exemplo, são criadores da chamada agricultura biodinâmica, método naturalista de produção que os nazistas consideravam um modelo adequado à ser implantado em larga escala, sobretudo quando a guerra cessasse e as terras conquistadas, que comporiam o lebensraun alemão, especialmente em territórios checos, poloneses e ucranianos, fossem pacificamente transformadas em áreas agrícolas que seguiriam o modelo de fazendas padrão do reich de mil anos, pensado pela sociedade Anenenbe, de Richard Walther Darré, importante liderança argentino-alemã que controlava essa instituição, ligada às SS, de Himmler, que tinha por função pesquisar a herança ancestral dos arianos e levar adiante o planejamento racial e colonizador que constituiria o "reich de mil anos". 

Alon Confino chama bem a atenção para a necessidade de historiadores e demais estudiosos do nazismo se voltarem para as questões imateriais que cercam esse fato histórico. A mentalidade, o imaginário, a psicologia da população alemã da época. Definitivamente, sair do enfoque biológico, cientificista e evolucionista do racismo e olhar para as questões da cultura da Alemanha do período. Isso fica claro desde o início de seu livro, quando insiste na questão da queima de rolos da torá e outros objetos ritualísticos judaicos pelas SA. Ele pergunta a razão dos alemães (ele não os distingue aqui dos nazistas) queimarem "a Bíblia", livro sagrado para os cristãos. A razão era variada: apavorar, afugentar, deixar os judeus confusos com o que os nazistas realmente queriam deles, em último caso, chocar. Mas, cabe a objeção que a torá, embora tenha os livros que compões o Antigo Testamento da Bíblia, em si não se trata da Bíblia. Nenhum judeu trata a Bíblia como a torá com acréscimos e, de igual maneira, nenhum cristão sensato (cristãos sionistas não são sensatos) trata a torá como a inteira Bíblia, portanto, a integral Palavra de Deus. Independente disso, a queima dos pergaminhos judaicos sacros queria, segundo o autor, passar a mensagem simbólica de que um novo cristianismo estaria em formação, limpo dos entulhos judaicos. 

















quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Ich hab's gewagt

 Ich hab's gewagt: "Eu ousei".



Inscrição que constava até 2011 no túmulo de Rudolf Hess. 

Sepultura destruída pela prefeitura local. O buscador da paz foi incinerado e suas cinzas jogadas no mar.


quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Curtas

Prova de como ficamos vagabundos. 

Quinta-feira é o dia do rodízio do meu carro. Fico atado a não passar nas marginais ou ir além do Aeroporto de Congonhas. É um saco. Eu queria ir no Bom Retiro nesse dia, mas, a ideia de ter que pegar um ônibus, descer em Santo Amaro, pegar o metrô, fazer baldeação na Santa Cruz e descer na Luz e andar meia José Paulino até chegar onde queria não está em cogitação. 

Em 2010 faria isso sem qualquer óbice.

Virei um vadio dependente do carro. 
***
Conto a história em passagens futebolísticas. 

Em 2003 me lembro claramente do encanto que foi ver Marcelo Gallardo desfilar com a linda camisa do River Plate, na Libertadores daquele ano. 

22 anos depois ele é um tiozinho atarracado que treina o mesmo River.

É difícil pensar que se passaram 22 anos. E eu ainda estou no mesmo lugar, na mesma casa, sob o mesmo teto. Verdade é que meu pai já não está aqui. Um dos meus irmãos, eterno passageiro desta morada, também já foi para a "Terra do Pé Junto" e o mais novo não mora mais aqui. Estou eu e minha mãe. A rua não mudou. As casas são quase todas as mesmas. Alguns vizinhos foram embora, outros morreram, outros ainda estão aqui. 

As minhas memórias são um monumento. Queria poder registra-las todas. 
***
Existem sensações que parecem únicas, que só você mesmo as sente, embora ao seu lado, naquele local e hora, existam outros tantos vivenciando o mesmo. 

Dizem que não existem experiências únicas. Talvez seja verdade. Mas, compartilhamos todas as sensações ou as sabemos descrevê-las bem o suficiente para os outros nelas se identifiquem? 

Uma tarde quente de domingo, com ameaça de chuva. Duas centenas de músicos. Irmandade cantando. A luz não cem por cento acesa no salão. Poucos lugares vazios para sentar. Mais trinta ou cinquenta lugares disponíveis para músicos? Talvez, não mais do que isso.

Há algo belo na arquitetura singela, igualitária e simétrica das congregações. Não há poluição. É um brilho que precisa ser admirado. Não é preciso ser barroco. O protestantismo que para no tempo tem essa beleza. O continuado é um assombro, faz mal. Templo não é cinema. Precisa ter luz. 
***
A direita do X vive descendo a lenha quando alguém fala em alta cultura. Presumir-se-ia tratar-se de uma cultura que beirasse os dois metros, pelo menos. Ficam cheios de caras quando alguém diz que escuta André Rieu. A nova direita é arrogantemente católica. É um péssimo defeito. E essa arrogante direita, católica porque chique, acha o quê, que se deve ouvir cantos gregorianos em latim, apenas? Ler George Bernanos, apenas? Aliás, tudo cascata! Nunca leram Bernanos. Leem posts do Instagram, quando muito. 

Eu continuo ouvindo André Rieu. E Richard Clayderman. E todo o easy listening. É ótimo. 

segunda-feira, 14 de julho de 2025

O paulistano eterno

 Me identifico com o paulistano que mora na casa que restou numa rua em dissolução.

É como o velho morador de Pinheiros, que habitava uma casa ou sobrado, hoje cercado de comércios, prédios envidraçados e milhares de transeuntes. 

É como alguém que resiste em morar numa casinha na Vila Olímpia. 

Ou mora no Largo 13.

Na avenida São João ainda resta uma casa.

Na mente tenho essas imagens. Desde sempre reparei nuns tipos assim. Um velho que envelhece com o imóvel. Ambos dois resistentes.

Eu sou também um resistente e minha casa também. Resistimos, pois somos eternos. 

A última casa da Avenida São João

Um desses resistentes, venceu a morte pela memória.


sábado, 12 de julho de 2025

O político humano

O melhor político que há é aquele que tem a sua história pequena rastreável: você sabe onde o sujeito toma cerveja, que padaria compra pão, em qual Drogasil vai quando precisa comprar um xarope pra tosse. Aqui em São Paulo há alguns assim. Vereadores, deputados e até mesmo o prefeito. Isso é um privilégio nesses tempos de distopia. É sinal que eles ainda são seres humanos. Brevemente, até isso será roubado de nós. 

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Um pentecostalismo elegante.

 Faleceu no último fim de semana o pastor Gedelti Gueiros, fundador da Igreja Cristã Maranata. Aqui em São Paulo essa denominação evangélica não é tão relevante, numericamente, como é no seu estado de fundação, o Espírito Santo. Os Gueiros eram presbiterianos que se separaram do presbiterianismo e caminharam em direção ao pentecostalismo. O que me chamou sempre a atenção, observando o movimento pelo olhar sociológico, é que a família Gueiros era uma família bastante educada, com acesso à espaços de poder. O pastor Gedelti foi um importante dentista e uma figura extremamente respeitada na sociedade capixaba. O atual presidente da igreja, Alexandre Gueiros é jurista e diplomata. O destacado poeta Carlos Nejar, membro da Academia Brasileira de Letras, é pastor maranata. 

Em um contexto de baixa escolarização, como é, normalmente, o meio pentecostal brasileiro, estejamos falando de lideranças ou de fiéis, a liderança presbiteral da Igreja Maranata tende a fugir da regra. Embora não pareça que seja dado destaque a essas figuras por suas formações profissionais e acadêmicas, ainda assim isso se destaca. Carlos Nejar talvez seja o protestante mais destacado nas letras brasileiras. Não me recordo agora de outro nome, ao menos vivo, que possa fazer-lhe sombra nesse quesito. Ao menos que tenha algum reconhecimento sobre si. Há inúmeros professores, acadêmicos que são evangélicos, mas não gozam do prestígio que o poeta tem. 

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Uma sala, um sofá e uma poltrona.

Uma sala. Um sofá e uma poltrona. Um homem assiste atentamente ao noticiário internacional. Ao seu redor poucos elementos. Uma incrível ausência de cortina permite que meu olhar invada sua morada. Na garagem um Fiesta 98 e um jardim em sequidão. Em 2025, ver cena assim é um exercício de história comparada. É como em 95 assistir uma cena sobrevivente de 1965. Eu vi isso também. Casas com móveis azuis bebê, radiolas, enciclopédias nas estantes, tv de tubo com móvel de madeira. Via carros dos anos 50 e 60. Rural e Aero Willys. Impala, Dodges, Gordini, TL, Variant, "Zé do Caixão" e toneladas de Fuscas. O menino de hoje talvez me veja e pense: esse sujeito, entrando na igreja numa noite de quarta feira, com sua Bíblia de corte dourado, com tênis antigo, com cara de velho, um mané, um sujeito do passado, com seu carro também fora de linha. Mal sabe ele o que pode lhe esperar: ser julgado, avaliado e analisado por gente que ainda sequer foi parida. 

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Faculdade pra que?

Me parece urgente repensar como um todo o ensino superior brasileiro e toda a prática docente, metodológica, avaliativa e de ingresso da nossa dita academia. O atual governo, movido sabe Deus por quais forças e interesses, parece ter tomado uma medida correta reduzindo um pouquinho as mamatas e descasos que havia com a verdadeira venda de diplomas, por meio dos cursos de graduação e especializações por via ead. O ead é uma farsa. É um sistema que pode atender a muitos, mas quase sempre atenderá da forma mais precária e desonesta possível. 

Com o crescimento e avanço dos aplicativos e sites de inteligência artificial, que podem fornecer respostas padrão para todo o tipo de perguntas de múltipla escolha ou ainda gerar parágrafos e mais parágrafos sobre qualquer assunto técnico que você pensar, basta que você aplique o prompt correto -- ou seja, saiba fazer as perguntas corretas para a inteligência artificial e direcioná-la, não há mais modelo de ensino à distância que faça o menor sentido, se ele não for baseado, na melhor das hipóteses, em aulas síncronas, com o professor ao vivo do outro lado da tela, forçando interação e discussão, como em uma sala de aula normal e, como instrumento avaliativo, não é possível no sistema ead fugir de seminários, apresentações e produções de texto. A aplicação de testes de múltipla escolha não cumpre sua função num sistema como esse. O chat GPT ou o Gemini estarão sempre ao alcance das mãos do aluno e com isso toda a lógica do aprendizado cai por terra. 

A ideia de que no ead o aluno seja obrigado a fazer as avaliações de maneira presencial em um polo, debaixo de alguma fiscalização (que deveria ser rigorosa, com fiscais e filmagens, destaco) já é um ganho substancial. Em 2014 fiz uma especialização em História Militar, que, por completa burrice minha, a abandonei, e essa pós tinha todas as suas avaliações presenciais, ainda que com possibilidade de consulta ao material impresso fornecido pela instituição de ensino superior. Era um tempo em que o ead ainda não estava tão safado, embora fosse já possível colar e fazer mutretas naquela época (sempre foi possível encomendar um tcc ou artigo acadêmico pronto por aí).

Ainda assim, não só o ead merece críticas. As graduações presenciais também. 

A metodologia de ingresso deveria ser totalmente revista.

Mais uma vez caberia dar um passo atrás e olhar para o passado. Voltar a ter o ingresso no ensino superior apenas por vestibulares presenciais com nota de corte mínima, a despeito das vagas existentes e também ser avaliado por redação. Talvez combinar isso com um rendimento mínimo das notas obtidas no ensino médio. É uma maneira de re-valorizar também o ensino médio, coisa muitíssimo necessária. 

Agora, outro exemplo objetivo. Com esse ingresso de pessoas despreparadas para o ensino superior a coisa já avançou para o caso de termos também professores muito despreparados para o ensino. Some-se a isso o grassante analfabetismo funcional. Um curso de direito, por exemplo, usa linguajar técnico que até muitos juristas precisam consultar dicionários específicos para entender. Há docentes que esperam que uma pessoa recém ingressa nas letras jurídicas vá compreender a maioria dos termos da área do direito. É uma ilusão. Repensar a metodologia e a didática dos cursos acadêmicos de direito é preciso. É necessário ter uma formação propedêutica muito segura nos dois primeiros semestres, ao menos. Ai podemos ir para o direito material e processual. Mas, o apressamento faz com que queiram que o aluno já tenha direito processual num primeiro semestre. Uma faculdade aqui da capital nem mais tem a disciplina da IED (Introdução ao Estudo do Direito) que é uma matéria elementar e fundamental.

Muitos dizem que a universidade para todos é um equívoco. Eu penso isso. É preciso mais critério em todo o processo, até para valorizar mais o ensino técnico profissionalizante e o ensino médio.


segunda-feira, 9 de junho de 2025

O contador

 "Papai em 80 mudou-se da capital para cá, quando passou no concurso de procurador da câmara municipal. Ele e mamãe já estavam juntos há coisa de três anos. Protelaram a chegada de um rebento por mais de dez anos, até que vim ao mundo. Menino, com cinco anos, foi matriculado no colégio particular de maior renome da vila, o que significa estar reunido com cerca de mais vinte crianças, maioria composta por filhos de vereadores e comerciantes locais. A escola não difere muito da cara que tem uma escola estadual, até a pintura verde claro com branco e as carteiras fabricadas por detentos são as mesmas. A história das aventuras e rotinas que ali tive cabem em um escrito à parte. As primeiras brigas, a primeira namoradinha, as excursões para o zoológico e o parque aquático, coisas que crianças urbanas passam. Nada de anormal, mas, o que é mais interessante do que nossas vidas monótonas, desde que contadas de forma pitoresca, não é verdade?

Terminado o colégio, prestei o vestibular para entrar na USP e consegui uma proeza: ser aprovado para o curso de ciências contábeis. Hoje acresceram o vocábulo "atuariais" ao nome do curso. Não sou despachante, nem faço seguros. Mexo com folhas de pagamento e duplicatas. Ter passado quatro anos no ônibus entre o Butantã e Itapecerica me concedeu tempo demais para me enfadar da profissão antes de me consolidar nela. Trabalhar num escritório aqui é um tédio, assim como quase tudo por essas bandas. Novidade é o assunto no quilo do Centro, quando a Polícia resolve fazer uma limpa aqui, deixando cinco neguinhos mortos e mais uns três pendurados para o dia seguinte. Fora isso, novela e futebol.

Na quarta-feira eu trabalhava normalmente. Ainda que o feriado fosse no meio da semana, sem que pudesse enforcar qualquer dia, uma pausa seria bem vinda, mas, havia trabalho pendente e clientes enchendo o saco por mensagens e ligações. Sorte a de todo o tipo de burocrata de hoje que os sites com sistemas dedicados estão aí. Geram planilhas, cuidam da transmissão de dados para a Receita Federal, o recolhimento de impostos, nos avisam quando licenças e alvarás estão por vencer e várias outras funções bastante bem vindas. Sem essas ferramentas o trabalho seria mais moroso, quase artesanal, como era até os anos 1990. Imagine a maluquice para a geração de hoje a ideia de ter que preencher um cheque e, ao pagar com ele, aguardar um telefonema do comércio para consultar se aquele meio de pagamento era um "borrachudo" ou não. 

Contratamos no escritório uma versão paga dessas inteligências artificiais. A concorrência está usando isso para ter ganhos de tempo com a geração de análises de planilhas e com a criação de outras planilhas mais. É um fluxo. Mandamos uma vazia para a empresa e a empresa, via sistema, vai preenchendo ela e mensalmente nos devolve. Nosso trabalho é pegar esses dados, avaliar e pensar em como podemos fazer o cliente escapar do fisco aqui ou ali. Ou se o recolhimento de FGTS dos funcionários está sendo pago corretamente. Ou ainda o controle de validade dos exames de saúde ocupacional. Antigamente tudo isso era feito à mão na própria empresa. Hoje, são os sistemas que cuidam disso e nós gerenciamos esses sistemas para as empresas preguiçosas, quero dizer, eficientes.

Comecei a brincar com a versão paga do chat. Quais serão os números da Mega Sena? Qual a idade do José Sarney? O governador Lucas Nogueira Garcez (aquele que fechou as zonas da Rua da Graça, no Bom Retiro) era homossexual? Tancredo Neves ainda está vivo? Qual a marca da pinga que o Lula bebe? Existe o jogo do leãozinho? Tadalafila impede a queda de cabelo? Adolf Hitler se casou com uma mulata no Mato Grosso? Onde é a entrada para Agartha em Embú das Artes? Quem tapou o buraco do Adhemar? Como tirar folga de volante do Passat 87? Essa última questão era de elevada pertinência. Dr. Adilson, meu chefe no escritório tinha uma tranqueira velha sobre rodas, que era esse Passat e dele fazia verdadeira adoração. Todo dia ele passava vários minutos na hora do chá falando que o Passat precisa ir de novo para a oficina, que precisa trocar a pastilha de freio, que tá vendo no Mercado Livre se encontra uma tampa do radiador, que no sábado vai subir o carro com um jacaré (aqueles elevadores manuais maiores, que tem em oficinas mecânicas -- os nossos, pequenos, que temos nos carros são os famosos "macacos", isso porque eles nos quebram os galhos!) para tentar fazer uma micro funilaria nos podres do assoalho. A última ladainha era a folga no volante. Eu não tenho ideia de como tirar a folga de um volante de qualquer que se o carro. Talvez o Passat, por ser Volks mais antigo, seja mais simples até do que de um modelo dos anos 2000 para cá ou os todo-tecnológicos carros atuais, elétricos, híbridos, cheios de guéri-guéri. 

Anotei num pedaço de papel para amanhã os números que o chat me deu, em resposta à primeira questão que lhe fiz. Amanhã a Casa Lotérica estará aberta e vou jogar as seis dezenas. Se esse bicho é esperto, vai que ele acerta. Se bem que é claro que eu não sou o primeiro sabichão que deve ter perguntado isso pra ele (aliás, ele ou ela, o chat tem sexo?). O Sarney vi que está com 95 anos e, benza-deus, não pega uma gripe, não dá uma topada numa pedra, não tem um joanete. O homem é mesmo um portento! Estava semana passada na Faculdade do Largo São Francisco falando sobre a "Constituição Cidadã", esse amontoado de letras e frases dividido em artigos, parágrafos e incisos que dizem que garantem os nossos direitos. O chat não foi claro sobre o senhor Lucas Nogueira Garcez, na época os jornais não tinham a liberdade de fazerem insinuações de teor sodomítico com o governador do estado. As zonas foram fechadas por questão de moral e ordem pública mesmo. Aliás, é coisa que está muito em falta ultimamente. Quando é que o nosso governo, que vive arrotando censura por aí contra quem fala mal dele vai começar a coibir a pornografia da internet? Terá essa coragem que poderá levantar uma turba silenciosa de onanistas? A ver. Tancredo Neves, no corpo estava morto, mas em espírito mais vivo do que nunca: dizem que em Brasília toda sexta-feira lideranças do MDB frequentam uma mesa branca onde o médium psicografa mensagens do eterno presidente-eleito para as presentes gerações do Centrão. Gilberto Kassab, Arthur Lira e até o judeu mastodôntico do Amapá, o senador Davi Alcolumbre são habitués da casa. Acho que aquele autor quando pensou em "Necropolítica" estava raciocinando noutros termos, mas, adiante. 

Sobre Adolf Hitler ter fugido vivo da Alemanha e ter vindo parar no Mato Grosso, casando-se, ainda por cima, com uma escurinha, a história tem lá os seus indícios: um livro sobre o tema foi escrito, há entrevistas sobre isso no programa do finado Jô Soares, reportagens do Roberto Cabrini, Glória Maria, do Globo Repórter foi in loco investigar a questão, não chegando ela em maiores conclusões, senão que no Mato Grosso além da erva-mate para o tereré há outras ervas fortes das puras, que o pessoal tráz da Bolívia. Voltando para o Rio ela trouxe um meio quilo para passar o mês. 

Embú das Artes é aqui. Apesar de estar em casa e de ouvir no centrinho sobre esse papo nas barracas dos hippies, eles nunca conseguiram me dar essa dica. Falaram uma vez que um maconheiro velho dizia que a entrada era embaixo do córrego do Jardim Arabutam. Eu mesmo nem sei onde fica o córrego, talvez perto do Habib's em direção à Régis Bittencourt. O próprio chat não conseguiu achar fontes que dessem respaldo para essa doidera. Aludiu que as pessoas procuram isso lá no Tibet, que um militar russo-germânico se disse o último khan e teria encontrado Shamballa e Agartha, mas, em Embú das Artes que é bom, nada. Quando eu estiver a pé por ali, no Arabutam, dou uma sondada melhor no assunto. 

O buraco do Adhemar quem tapou foi o Jânio e depois a Erundina. Está respondido. Não existe mais o buraco do Adhemar. "


Curtas

A política externa do Governo Lula III é inexistente. Não demonstra ser o reflexo de nada além de mero pragmatismo barbante, ou melhor traduzido seria: empurrar com a barriga o país mais ainda ao anti americanismo. O Brasil está fadado a permanecer como colônia de exploração, agora chinesa. A direita bolsonarista representa a reação: quer que o país permaneça como colônia americana. Eu, como sou arquitradicionalista quero retornar ao colonialismo europeu. 

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O BRICS nada mais é do que a continuação dos chamados "Países não alinhados". Nada de novo debaixo do sol.

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A máquina de propaganda do Kremlin continua trabalhando mundo a fora a todo o vapor, igual aos anos 1960. Se o comunismo morreu, a Rússia e o Comintern continuam agindo. O Imperialismo Russo é chaga que já tem alguns séculos, precede a URSS e a transcende. O seu fim só Deus sabe.

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Lyndon LaRouche e Norberto Keppe entram em um bar...

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E por falar no LaRouche, ele falava em uma conspiração entre Platão e Aristóteles, assumindo o lado do primeiro. Pergunto, quem manipulava a conspiração existencial antes dos dois filósofos gregos?



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Desde que a Marina morreu eu fico extremamente comovido com a notícia ou a ideia do falecimento de qualquer animalzinho de estimação. O pensar na morte que acontecerá de qualquer um dos meus gatos já me arranca lágrimas. 

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sábado, 3 de maio de 2025

A ladeira da minha memória

 Eu nunca conversei com um urbanista. Arquitetos sim, aqueles que ao que conste se dedicam ao planejamento de construções. Um urbanista que pense em problemas urbanos eu nunca conversei. Sei que existem. Até acompanho alguns por aí nas redes, mas nunca tive a chance de sentar com um desses raros profissionais para prosear. Será que eles são tarados por questões urbanas como eu ou como vários busólogos ou entusiastas de transporte costumam ser?

Só sei que eu, desde os onze anos, sou um apaixonado pelo caótico da cidade. A coisa começou com um guia de ruas Mapograf de 1997, que guardo com carinho até hoje. Ali, época em que eu cursava a quinta série do ensino fundamental, eu comecei decorando nomes de bairros, ruas, ceps, distritos. No mesmo ano um rapaz da minha turma, chamado Tiago e sobre o qual eu não tenho mais nenhuma informação do seu paradeiro, que já era mais avançado, sabia de cor linhas de ônibus, itinerários e códigos delas. Esse menino tinha o pai marreteiro na feira. Era um menino bonzinho. Eu espero que Deus tenha tido misericórdia de sua vida. Ele na época já era office boy, isso com onze, doze, treze anos, que foi a última vez que eu tive notícia dele, pois passei a estudar em outra escola, um pouco afastada de casa, coisa de um quilômetro de lonjura. 

A primeira vez que andei de ônibus sozinho foi no ano 2000. Eu tinha 10 anos. Peguei um ônibus na Avenida Um, imagino ter feito uma baldeação no Rio Bonito e ter pego outro que passasse pela então nominada Avenida Robert Kennedy, hoje Avenida Atlântica. Havíamos mudado de bairro no segundo semestre daquele ano e meus pais estavam preocupados com a minha mudança de escola naquela altura do ano letivo. Se a memória não me trai, fiquei entre agosto e outubro fazendo esse trajeto, não sem muito custo para os meus país, custo em preocupação por pensar no gordinho andando sozinho de ônibus por ai. 

Recordo-me que em agosto de 2000 eu voltando para casa desci um ponto antes e decidi fazer um outro caminho para casa à pé. O suficiente para dar uns vinte minutos de atraso do horário de chegada habitual. Foi o suficiente para causar pânico na família. Meu irmão mais velho do meio e pai começaram e me procurar pelo bairro, foram nos comércios, avisaram a viatura da rádio patrulha. Daqui a pouco chego em casa, com a mochila nas costas. Acho que não apanhei, só levei um esporro qualquer. Mais tarde no mesmo dia já estavam me mandando na padaria ir comprar cigarro. 

Essa aventura de meia milha parece ter sido o fato derradeiro para que meus pais me mudassem imediatamente para uma nova escola, que fica em frente de casa até hoje. Nesse meu período da juventude comecei a andar mais de ônibus. Meu pai não dirigia mais desde fins do ano 2000, já que não tinha carro e enxergava com cerca de 20% da visão, apenas. O ônibus passou a ser indispensável. Era um período em que aqui onde moramos não havia nenhum grande mercado ou atacarejo próximo. Precisávamos nos deslocar de ônibus cerca de 4 quilômetros para a Cidade Dutra (onde havia um Sonda) ou para Santo Amaro, que contava com quatro supermercados na época (Sonda, do Shopping Center Sul - hoje Shopping Boa Vista, o Barateiro, o Futurama e o Sé). Meu pai ainda não totalmente combalido pelas enfermidades buscava trabalhos de pintor ou cuidador de imóveis (espécie de corretor que fica sentado em frente a grandes casas que estejam a venda em bairros finos, a espera de clientes que quisessem visitar a moradia). Nesse período andei bastante a cidade com ele: Pinheiros, Santo Amaro, Santa Cecília, Luz, Sé, Bela Vista, Paulista, Jabaquara, Vila Mariana. É onde me lembro de ter passado com mais atenção na época. As razões eram por trabalho dele, poucas, mas, sobretudo, para ir em médicos (o que aconteceu muitas vezes) e também por passeio ou para ir até a igreja. Foi um período de muita pobreza em casa. Embora não pagássemos aluguel, o dinheiro era pouco e contado. Meu pai era aposentado por invalidez, tinha pouca disposição de saúde para voltar a trabalhar e não tinha muitos ofícios disponíveis. Meu pai foi muita coisa, da miséria à riqueza. Foi bedel, guarda civil, motorista, vendedor, concessionário de veículos, dono de autopeças, político e por fim, aposentado. Não me consta que fosse vagabundo. Era nervoso, antigo, rústico, grosseiro. O seu casamento com a minha mãe me deixou um precioso ensinamento prático sobre a ideia de jugo desigual, onde ele era 18 anos mais velho, de origem geográfica distinta, cultura distinta da minha mãe. Um paulistano comum de pais interioranos e italianos e minha mãe nordestina. Choque de culturas que fizeram com que eu e meus irmãos presenciassem infindáveis discussões. Minha mãe parece ter sido muito triste e guardar muito arrependimento pelo que passou. Não sei se ela consegue compreender a coisa com o necessário fatalismo. Me parece que ainda tem a ideia de que tudo podia ter sido diferente. É uma inconformista. 

As minhas memórias são muitas e tenho pensado com mais frequência em deixar elas registradas. Evidentemente, para ninguém. Quem teria interesse nelas, quando eu estiver sem mente ou morto? Quem poderá se interessar pelas memórias de um sujeito ordinário como sou, que nada de espetacular fez na história? Talvez os historiadores da micro-história ou da história do imaginário ou das mentalidades. Quem sabe, por pouco tempo, algum ex-colega de faculdade ou do trabalho, ou ainda algum ex-aluno. Eu me interessaria por breves memórias biográficas de alguns deles. O homem é essencialmente um fofoqueiro. O historiador ainda mais. 

As memórias do ambiente, ou seja, da cidade são sempre muito vívidas, pois são objeto da minha preocupação desde essa época. A minha defesa da independência do estado de São Paulo é parcialmente filha dessa preocupação urbana, juntada com a formação de identidade regional. Eu sou eu em Santo Amaro, na Zona Sul e em São Paulo. O máximo da extensão geográfica da minha identidade é o estado. Além disso, não sou ligado à nada e pouco me importa um venezuelano ou um carioca, são iguais, ambos distantes da minha vista e do meu povo. Eu pego o carro e vou para Santos e vejo o paulista, que fala como eu. Vou para Campinas e ali quem vive é um paulista. Além das fronteiras do estado bandeirante nada me importa. São todos iguais ali. 

Terminei de ler essa semana um livro da coleção de livros, há muitos anos publicada pelo Arquivo Histórico de São Paulo. Trata-se do volume de 2019 que conta a história de um bairro que não transito habitualmente, a Vila Missionária. Bairro pobríssimo da zona sul paulistana, que no passado era famoso pela criminalidade e hoje, além da criminalidade é famoso também por ser o local de onde saiu a deputada federal Tábata do Amaral. 

A enormidade de São Paulo nos faz conhecer pouco a própria cidade. Eu devo ter passado de carro, mais tardar, meia dúzia de vezes pela Vila Missionária, indo para alguma igreja nas proximidades do bairro. Mas, quem conhece uma periferia de São Paulo pode dizer que conhece todas. Elas são todas idênticas. São compostas pelo mesmo substrato humano e social. São constituídas de ruas com má divisão no loteamento, com lotes pequenos, muitas vezes mal acabadas, por trechos que ainda intercalam vielas e escadões que levam para as favelas, que costumam, muitas vezes, ficarem nos fundos da área dos terrenos que foram minimamente loteadas (e que, comumente, dão para a avenida ou rua principal). Quem andou no Jardim Iporanga ou no Grajaú, ou ainda no Jardim São Luís já conhece a Vila Missionária, ainda que jamais soubesse da existência de lugar.

O livro escrito sobre tal bairro traz algumas informações bastante interessantes, ainda que o enfoque dado pelo autor, Aquiles Coelho Silva, seja o sociológico e não o memorial. A parte da memória, ainda que sempre presente, serve para levantar a bola para a análise da formação social e econômica da Vila Missionária. O nome do bairro, por exemplo, é em razão do loteamento ter sido feito por uma obra missionária da Igreja Católica, liderado por um padre chamado Aldo. O padre e sua obra missionária pretendiam criar um loteamento modelo, mas, pela forças das circunstâncias, aos poucos foram cedendo às necessidades da população pobre que foi se estabelecendo ali. 

Nas décadas de 1970 até 1990 se tratava de bairro em formação, com ruas de terra, barracos de madeira aos montes, ausência de luz nas ruas, sem coleta e tratamento de esgoto pela Sabesp, com poucas vagas em creches para que as mães pobres que tivessem que ir trabalhar em outros bairros tivessem onde deixar os seus rebentos. Essa realidade não é diferente de inúmeras periferias paulistanas e da grande São Paulo até os dias de hoje. Talvez alguns dessas defasagens públicas tenham sido minimizadas pela ação social do governo, mas, o grossos dos problemas permanecem. A atuação do poder público para os bairros pobres é sempre atrasadas e pouca. O pobre sempre está lascado várias vezes ao dia: trabalha em serviços ruins e de baixa remuneração, recebe pouco, corre mais risco de ser assaltado, se alimenta mal, cuida mal da saúde, é relaxado com a educação dos seus filhos. É um círculo vicioso. 

Eu defendo que a sociedade e o poder público não podem mais ignorar essa situação da pobreza urbana, achando que ela será resolvida com transferência de renda. A transferência de renda pura e simples é nociva. Se você for um revolucionário marxista irá achar que ela é um instrumento de cooptação das classes trabalhadoras ou do lumpemproletariado, que perderá assim a sua capacidade de ação revolucionária direta. Se for um liberal irá achar que essas pessoas tenderão a se acomodar e não buscar sair daquele estado de coisas que se encontram. Eu tendo a concordar com os dois lados da moeda. As políticas de transferência de renda precisam ser passageiras e totalmente atreladas com outras ações de maior porte do estado, como planejamento familiar, oferta de ensino adequado, garantia de segurança pública e transporte, reurbanização, oferta de cultura de qualidade que possa elevar e integrar essas comunidades pobres, tirando-as da cultura de gueto que muitas vezes estão enfurnadas. 

Minha visão de problemas urbanos como esse é muito distinta daquela que o autor do livro tem. Assim como ele eu também sempre fui pobre, mas meus pais tinham cultura e souberam me transmitir alguma dessa cultura. Ainda que as revistas que eu pudesse ler não fossem novas, a leitura sempre enriqueceu e trouxe parâmetros novos. A cultura musical rica dos meus pais não me levou para nenhum gueto. 

Já escrevi e defendo um amplo plano de reurbanização de favelas e política pública severa de combate às invasões. Vamos ajudar a essa população pobre a ter o ser apartamentozinho da Cohab. É bem mais digno. E quem tenham transporte público na porta, e escola de qualidade para si e para os seus. E quem possam ter emprego e se o governo tiver que transferir renda, que dê como complemento para quem tem já carteira assinada. Você trabalha e ganha um salário mínimo do seu patrão, é arrimo de família? Tome então mais 300 reais para complementar a renda. Dar dinheiro só por dar, para sustentar a vadiagem não é mais possível. Esta é uma grossa generalização, mas é assim porque há muitos casos.


O imaginário pós nazista

Em 1945, com o avanço de tropas aliadas sobre a Alemanha, chegava ao fim o teatro ocidental da Segunda Guerra Mundial. Os soviéticos por um ...