Em 1945, com o avanço de tropas aliadas sobre a Alemanha, chegava ao fim o teatro ocidental da Segunda Guerra Mundial. Os soviéticos por um flanco e os demais membros da coalizão aliada por outro. Até o Brasil participou desse processo, embora tenhamos ficado mais ao sul, não chegando na hora mais escura em Berlim.
30 de abril daquele ano é a data mais importante, não pelo fim em si das hostilidades, mas, pelo fim da vida de Adolf Hitler, cuja morte se registra nesse dia, ainda que muitos insistam na hipótese de que ele não tenha se matado e tenha fugido. Não conheci pessoa que estudasse ou acompanhasse o tema a sério que levasse em consideração a hipótese de que o führer tenha saído com vida de Berlim. É uma hipótese que não combina com a ideia de um final heróico. É ideia de um Hitler fraco, covarde e que, mais importante ainda, não se apoia nas evidências históricas.
Oitenta anos depois e o nazismo e a vida de Hitler ainda são assuntos de momento, palpitantes.
Quando o assunto aparece em um noticiário é como se a ameaça nazista estivesse tão viva como em 1933, ano em que o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães subiu ao poder, na República de Weimar.
São comuns reportagens mostrando alguma pessoa, normalmente um colecionador de itens históricos relacionados à Segunda Guerra Mundial, detido pela polícia, que reúne os objetos e "monta a cena", ou seja, os dispõe de maneira a dar a impressão ao telespectador de que se trata de alguém perigoso, à margem da sociedade, um homem da paleolítica que foi pego, um perigo iminente que rondava a sociedade livre. Sim, sempre um homem perigoso com uma machadinha de cortar bifes, uma bandeira, umas fotos e meia dúzia de livros. Enquanto isso, a onipresença de prisões de bandidos, ligados ou não às facções criminosas que co-controlam este país não chocam mais quando aparecem na imprensa. Uma prisão de meia tonelada de drogas, armas de grosso calibre, explosivos ou o estouro de um cativeiro chamam muito menos a atenção da imprensa do que alguém que é detido por uma investigação de algum crime de opinião ou de ter memorabília militar do período nazista. Qualquer alusão ao nazismo é pior do que qualquer outro delito. Não a toa dizem que nas cadeias, quando um skinhead é preso, ele fica em um pavilhão que reúne criminosos considerado irrecuperáveis pela própria bandidagem, como parricidas, pedófilos e outros psicopatas.
Porém, via de regra, para chegar até a cadeia é preciso ter o fato criminoso, que, normalmente não existe nesses casos mostrados na TV. A imprensa se alimenta da atenção que o público dá à essa temática. Ser nazista no Brasil é um crime que está assentado na lei 7.716/1989, que traz a seguinte ideia: que é crime praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa – ou reclusão de dois a cinco anos e multa se o crime foi cometido em publicações ou meios de comunicação social. Diz ainda a legislação: que fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.
Ou seja, nós, os historiadores estamos resguardados em nossos propósitos investigativos e de estudo do tema. Nossa finalidade não é a divulgação política do assunto, mas a discussão intelectual e acadêmica sobre a questão, amparados na liberdade de expressão, esse princípio tão humilhada, abatido e maltratado no Brasil, que ainda resiste em permanecer na legislação nacional.
Foto mostra como uma cena é montada pela polícia para a imprensa. O que vemos? Umas facas, como milhões de brasileiros têm em casa, umas cordas e um livro que oficialmente não tem sua publicação vedada no Brasil, desde que seja para finalidades de estudo. Esse caso específico é dessa semana no estado do Mato Grosso. |
Não tenho acesso à dados e nem sei se eles existem disponíveis, mas, seria capaz de apostar que a maior parte dos crimes de racismo registrados no Brasil não passa nem perto de qualquer relação com o tema histórico do nazismo. O Brasil é um país de aberto conflito racial. Por mais que pensadores tenham teorizado sobre como o país lidou em sua história com o melting pot de nativos americanos, brancos e africanos, teoria nenhuma pode suplantar a realidade. E a realidade é a violência e o conflito, onde uma raça foi conquistadora e dominadora e assimilou uma outra, a dos indígenas, que foram em um certo momento escravizados e depois reduzidos à servidão ou ainda isolados, como parte deles se encontra hoje. A raça branca ainda trouxe para a América os negros de África, comprados naquele continente onde já eram escravizados de seus patrícios, inclusive escravizados por muçulmanos naquele continente, matéria já fartamente debatida e registrada. O tráfico negreiro transatlântico, controlado por mercadores judeus e conversos é outra marca desse processo. A única assimilação que o ocorreu, e é estupidez negar, é aquele da cobiça: o sexo entre brancos e negros ou indígenas gerou uma massa de gente parda, que pode ter se diluído mais ainda com outros brancos, sobretudo após o século XIX e terem "embranquecido". De qualquer forma, o hoje registra o racismo entre negros e brancos, ou seja, há conflito racial no Brasil. Esse conflito não passa pelo tema ou pela discussão do nazismo.
A maneira como sempre querem associar racismo ao nazismo, ainda quando o nacional socialismo é um aspecto marginal, colateral, chama a minha atenção. Considero que isso é uma estratégia da imprensa para obter impacto de audiência. Estivéssemos nos tempos em que a imprensa escrita em papel ainda era relevante eu diria que isso é feito para vender jornal ou revista. Hoje é para conquistar engajamento ou views. A imprensa não trata o tema do nacional socialismo de outra forma senão de maneira sensacionalista. Aqui no Brasil ou em outros países, especialmente nos Estados Unidos, há uma eterna exposição de sobreviventes de campos de concentração. O historiador americano judeu Norman Finkelstein já criticou essa super exposição como algo mercadológico, como mais uma atração para o cinema de Hollywood ou para a imprensa, que obtém bons índices quando exploram essa temática. Filmes sobre o nazismo ou sobre campos de concentração chamam a atenção do público e vendem ingressos e publicações. É uma questão comercial, ao fim e ao cabo, essa super exploração. A imprensa não parece se preocupar da mesma forma com temas históricos violentos semelhantes, como os relacionados a outras guerras do século XX. Nada é tão paradigmático para a imprensa comercial ou para a mídia contemporânea como a Segunda Guerra Mundial. Tenho a impressão que uma reportagem na imprensa brasileira sobre nossas revoluções, verdadeiros conflitos cívico militares, como o Golpe de 1930, a Revolução de 1932, o 31 de março de 1964 ou mesmo a própria participação brasileira na Segunda Guerra Mundial chamam tanto a atenção da imprensa quanto os temas ligados diretamente à Adolf Hitler, o nazismo ou a morte de judeus na guerra. A participação brasileira no conflito chama atenção da comunidade de entusiastas do meio militar, historiadores, descendentes de veteranos da guerra, mas para a imprensa é como se fosse uma história a parte. Tenho a impressão que a imprensa brasileira acha que a FEB não lutou contra o Eixo. Que a relevante participação brasileira não teve importância. Nos importamos com filmes como O resgate do soldado Ryan ou Pearl Harbor, histórias relacionadas com o lado americano que participou na Europa. Não temos histórias interessantes ao público para serem contadas que envolvam a soldadesca brasileira que lutou na Europa? A imprensa brasileira acha que não.
A imprensa e a educação escolar, que andam juntas de mãos dadas em todo o processo de formação intelectual da sociedade ocidental contemporânea, são as responsáveis por fermentar o imaginário popular, passados exatos oitenta anos do fim da Segunda Guerra Mundial. O tema do nazismo e de Hitler vende bem. É como falar de filmes de super heróis ou como falar de histórias épicas da Bíblia. É um assunto comercial. A imprensa mantém viva a apreensão sobre o tema como uma maneira de criar um clima propício para vender mais: ingressos para o cinema, assinaturas de plataformas de streaming, livros e revistas. No Brasil, revistas de temáticas históricas que tinham apelo popular e eram facilmente encontradas nas bancas eram aquelas que falavam de dois assuntos: maçonaria e nazismo. As abordagens sempre são de teor conspiratório. Aquele que lê buscava ali descobrir segredos dos poderosos. Nazistas e maçons são vistos como grupos poderosos que tramavam por mais poder, sempre agindo pelas sombras. Até hoje se você for em bancas de jornais e revistas que ainda subsistem, provavelmente encontrará publicações sobre esses dois temas. É o que vende. É o que o público está interessado. Ao contrário do nazismo, a maçonaria representa um interesse mais profundo, pois é assunto que raramente é abordado pela imprensa, ao mesmo tempo em que há mais lojas maçônicas no Brasil do que templos da Igreja Universal do Reino de Deus.
Se as bancas de jornais, espécies em extinção, junto com as livrarias físicas, não tem mais muitas vendas de revistas sensacionalistas de divulgação histórica, a venda de livros sobre o nacional socialismo e Hitler continuam sendo relevantes. Sempre se pode encontrar novas publicações sobre o tema. Normalmente autores internacionais em traduções. Este ano li dois livros recentemente publicados no Brasil sobre o tema. O primeiro é Os monstros de Hitler (Editora Zahar, 2025), do historiador alemão Eric Kurlander. O segundo é Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranóica (Editora Crítica, 2022), de Richard J. Evans, um já consagrado autor de livros sobre o nazismo e a Segunda Guerra Mundial. Tenho mais outros três para ler que tratam desses temas do nazismo. Não tenho muito apreço pelo estudo das questões militares da Segunda Guerra, mas, pelos bastidores, pelo imaginário e pela cultura do período. Os dois livros, embora muito mais o primeiro, tratam de como as teorias da conspiração estão relacionadas ao nazismo e ao führer.
Esses dois livros são de historiadores que eu chamo de ortodoxos. São dois acadêmicos. Não tratam aqui de abordagens levianas, de abordagens alternativas. Fazem um inventário bibliográfico clássico.
Kurlander é professor na Universidade Stetson, da Flórida. Ele neste livro faz um passeio bem detalhado pelo cenário ocultista alemão do pré e o durante Segunda Guerra Mundial. O ocultismo, defino, como uma variedade práticas de artes alternativas de entendimento de fenômenos ou pretensos fenômenos humanos pararreligiosos, como a astrologia, o tarot, a cabala, a maçonaria, o rosacrucianismo, a antroposofia, a ariosofia, geomancia, mesmerismo, espiritismo ou a parapsicologia. Adoto aqui a expressão pararreligioso, para me referir à atitudes que tendem a ser praticadas não em um sentido religioso ortodoxo, dentro de uma doutrina cristã habitual, mas, que podem ser adotadas por indivíduos religiosos ou não, ainda que se busque com isso acessar a transcendência, obtendo revelações, falando com espíritos, tendo contato com outras dimensões, descobrindo aquilo que está oculto no saber religioso convencional. O ocultista me parece aquele sujeito inconformado com a maciez de um rito religioso tradicional e busca ir além, ou direto à fonte em busca de caminhos alternativos, daí ser paralelo à religião.
A Alemanha, Kurlander aponta, é uma terra próspera para o progresso de doutrinas ocultistas alternativas. Cito, por exemplo, que foi ali onde a antroposofia nasceu, como a costela separada da teosofia por Rudolf Steiner, um pupilo da Madame Blavastky. A antroposofia existe até hoje, tem crescido e aumentado o número de seus adeptos no mundo todo. Hoje se apresenta de forma mais maneira, mais mansa, sem qualquer referência ao nazismo, ainda que o autor cite inúmeras vezes que antroposofistas ocuparam muitos cargos de destaque nos departamentos de pesquisa de ciências paralelas do Terceiro Reich. Não me parece que os antroposofistas brasileiros tenham qualquer simpatia por aspectos do nazismo. Nunca observei nada sobre isso. A Sociedade Antroposófica em São Paulo, ligada à colônia alemã paulistana não parece ter absolutamente nada a ver com o nazismo. O que Eric Kurlander demonstra, no entanto, é que abordagens heterodoxas de antroposofistas eram muito bem vistas por líderes nazistas, que procuravam dar voz à ciência alternativa, como, por exemplo, a homeopatia e o vegetarianismo. Rudolf Steiner e os antroposofistas, por exemplo, são criadores da chamada agricultura biodinâmica, método naturalista de produção que os nazistas consideravam um modelo adequado à ser implantado em larga escala, sobretudo quando a guerra cessasse e as terras conquistadas, que comporiam o lebensraun alemão, especialmente em territórios checos, poloneses e ucranianos, fossem pacificamente transformadas em áreas agrícolas que seguiriam o modelo de fazendas padrão do reich de mil anos, pensado pela sociedade Anenenbe, de Richard Walther Darré, importante liderança argentino-alemã que controlava essa instituição, ligada às SS, de Himmler, que tinha por função pesquisar a herança ancestral dos arianos e levar adiante o planejamento racial e colonizador que constituiria o "reich de mil anos".
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