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sábado, 3 de maio de 2025

A ladeira da minha memória

 Eu nunca conversei com um urbanista. Arquitetos sim, aqueles que ao que conste se dedicam ao planejamento de construções. Um urbanista que pense em problemas urbanos eu nunca conversei. Sei que existem. Até acompanho alguns por aí nas redes, mas nunca tive a chance de sentar com um desses raros profissionais para prosear. Será que eles são tarados por questões urbanas como eu ou como vários busólogos ou entusiastas de transporte costumam ser?

Só sei que eu, desde os onze anos, sou um apaixonado pelo caótico da cidade. A coisa começou com um guia de ruas Mapograf de 1997, que guardo com carinho até hoje. Ali, época em que eu cursava a quinta série do ensino fundamental, eu comecei decorando nomes de bairros, ruas, ceps, distritos. No mesmo ano um rapaz da minha turma, chamado Tiago e sobre o qual eu não tenho mais nenhuma informação do seu paradeiro, que já era mais avançado, sabia de cor linhas de ônibus, itinerários e códigos delas. Esse menino tinha o pai marreteiro na feira. Era um menino bonzinho. Eu espero que Deus tenha tido misericórdia de sua vida. Ele na época já era office boy, isso com onze, doze, treze anos, que foi a última vez que eu tive notícia dele, pois passei a estudar em outra escola, um pouco afastada de casa, coisa de um quilômetro de lonjura. 

A primeira vez que andei de ônibus sozinho foi no ano 2000. Eu tinha 10 anos. Peguei um ônibus na Avenida Um, imagino ter feito uma baldeação no Rio Bonito e ter pego outro que passasse pela então nominada Avenida Robert Kennedy, hoje Avenida Atlântica. Havíamos mudado de bairro no segundo semestre daquele ano e meus pais estavam preocupados com a minha mudança de escola naquela altura do ano letivo. Se a memória não me trai, fiquei entre agosto e outubro fazendo esse trajeto, não sem muito custo para os meus país, custo em preocupação por pensar no gordinho andando sozinho de ônibus por ai. 

Recordo-me que em agosto de 2000 eu voltando para casa desci um ponto antes e decidi fazer um outro caminho para casa à pé. O suficiente para dar uns vinte minutos de atraso do horário de chegada habitual. Foi o suficiente para causar pânico na família. Meu irmão mais velho do meio e pai começaram e me procurar pelo bairro, foram nos comércios, avisaram a viatura da rádio patrulha. Daqui a pouco chego em casa, com a mochila nas costas. Acho que não apanhei, só levei um esporro qualquer. Mais tarde no mesmo dia já estavam me mandando na padaria ir comprar cigarro. 

Essa aventura de meia milha parece ter sido o fato derradeiro para que meus pais me mudassem imediatamente para uma nova escola, que fica em frente de casa até hoje. Nesse meu período da juventude comecei a andar mais de ônibus. Meu pai não dirigia mais desde fins do ano 2000, já que não tinha carro e enxergava com cerca de 20% da visão, apenas. O ônibus passou a ser indispensável. Era um período em que aqui onde moramos não havia nenhum grande mercado ou atacarejo próximo. Precisávamos nos deslocar de ônibus cerca de 4 quilômetros para a Cidade Dutra (onde havia um Sonda) ou para Santo Amaro, que contava com quatro supermercados na época (Sonda, do Shopping Center Sul - hoje Shopping Boa Vista, o Barateiro, o Futurama e o Sé). Meu pai ainda não totalmente combalido pelas enfermidades buscava trabalhos de pintor ou cuidador de imóveis (espécie de corretor que fica sentado em frente a grandes casas que estejam a venda em bairros finos, a espera de clientes que quisessem visitar a moradia). Nesse período andei bastante a cidade com ele: Pinheiros, Santo Amaro, Santa Cecília, Luz, Sé, Bela Vista, Paulista, Jabaquara, Vila Mariana. É onde me lembro de ter passado com mais atenção na época. As razões eram por trabalho dele, poucas, mas, sobretudo, para ir em médicos (o que aconteceu muitas vezes) e também por passeio ou para ir até a igreja. Foi um período de muita pobreza em casa. Embora não pagássemos aluguel, o dinheiro era pouco e contado. Meu pai era aposentado por invalidez, tinha pouca disposição de saúde para voltar a trabalhar e não tinha muitos ofícios disponíveis. Meu pai foi muita coisa, da miséria à riqueza. Foi bedel, guarda civil, motorista, vendedor, concessionário de veículos, dono de autopeças, político e por fim, aposentado. Não me consta que fosse vagabundo. Era nervoso, antigo, rústico, grosseiro. O seu casamento com a minha mãe me deixou um precioso ensinamento prático sobre a ideia de jugo desigual, onde ele era 18 anos mais velho, de origem geográfica distinta, cultura distinta da minha mãe. Um paulistano comum de pais interioranos e italianos e minha mãe nordestina. Choque de culturas que fizeram com que eu e meus irmãos presenciassem infindáveis discussões. Minha mãe parece ter sido muito triste e guardar muito arrependimento pelo que passou. Não sei se ela consegue compreender a coisa com o necessário fatalismo. Me parece que ainda tem a ideia de que tudo podia ter sido diferente. É uma inconformista. 

As minhas memórias são muitas e tenho pensado com mais frequência em deixar elas registradas. Evidentemente, para ninguém. Quem teria interesse nelas, quando eu estiver sem mente ou morto? Quem poderá se interessar pelas memórias de um sujeito ordinário como sou, que nada de espetacular fez na história? Talvez os historiadores da micro-história ou da história do imaginário ou das mentalidades. Quem sabe, por pouco tempo, algum ex-colega de faculdade ou do trabalho, ou ainda algum ex-aluno. Eu me interessaria por breves memórias biográficas de alguns deles. O homem é essencialmente um fofoqueiro. O historiador ainda mais. 

As memórias do ambiente, ou seja, da cidade são sempre muito vívidas, pois são objeto da minha preocupação desde essa época. A minha defesa da independência do estado de São Paulo é parcialmente filha dessa preocupação urbana, juntada com a formação de identidade regional. Eu sou eu em Santo Amaro, na Zona Sul e em São Paulo. O máximo da extensão geográfica da minha identidade é o estado. Além disso, não sou ligado à nada e pouco me importa um venezuelano ou um carioca, são iguais, ambos distantes da minha vista e do meu povo. Eu pego o carro e vou para Santos e vejo o paulista, que fala como eu. Vou para Campinas e ali quem vive é um paulista. Além das fronteiras do estado bandeirante nada me importa. São todos iguais ali. 

Terminei de ler essa semana um livro da coleção de livros, há muitos anos publicada pelo Arquivo Histórico de São Paulo. Trata-se do volume de 2019 que conta a história de um bairro que não transito habitualmente, a Vila Missionária. Bairro pobríssimo da zona sul paulistana, que no passado era famoso pela criminalidade e hoje, além da criminalidade é famoso também por ser o local de onde saiu a deputada federal Tábata do Amaral. 

A enormidade de São Paulo nos faz conhecer pouco a própria cidade. Eu devo ter passado de carro, mais tardar, meia dúzia de vezes pela Vila Missionária, indo para alguma igreja nas proximidades do bairro. Mas, quem conhece uma periferia de São Paulo pode dizer que conhece todas. Elas são todas idênticas. São compostas pelo mesmo substrato humano e social. São constituídas de ruas com má divisão no loteamento, com lotes pequenos, muitas vezes mal acabadas, por trechos que ainda intercalam vielas e escadões que levam para as favelas, que costumam, muitas vezes, ficarem nos fundos da área dos terrenos que foram minimamente loteadas (e que, comumente, dão para a avenida ou rua principal). Quem andou no Jardim Iporanga ou no Grajaú, ou ainda no Jardim São Luís já conhece a Vila Missionária, ainda que jamais soubesse da existência de lugar.

O livro escrito sobre tal bairro traz algumas informações bastante interessantes, ainda que o enfoque dado pelo autor, Aquiles Coelho Silva, seja o sociológico e não o memorial. A parte da memória, ainda que sempre presente, serve para levantar a bola para a análise da formação social e econômica da Vila Missionária. O nome do bairro, por exemplo, é em razão do loteamento ter sido feito por uma obra missionária da Igreja Católica, liderado por um padre chamado Aldo. O padre e sua obra missionária pretendiam criar um loteamento modelo, mas, pela forças das circunstâncias, aos poucos foram cedendo às necessidades da população pobre que foi se estabelecendo ali. 

Nas décadas de 1970 até 1990 se tratava de bairro em formação, com ruas de terra, barracos de madeira aos montes, ausência de luz nas ruas, sem coleta e tratamento de esgoto pela Sabesp, com poucas vagas em creches para que as mães pobres que tivessem que ir trabalhar em outros bairros tivessem onde deixar os seus rebentos. Essa realidade não é diferente de inúmeras periferias paulistanas e da grande São Paulo até os dias de hoje. Talvez alguns dessas defasagens públicas tenham sido minimizadas pela ação social do governo, mas, o grossos dos problemas permanecem. A atuação do poder público para os bairros pobres é sempre atrasadas e pouca. O pobre sempre está lascado várias vezes ao dia: trabalha em serviços ruins e de baixa remuneração, recebe pouco, corre mais risco de ser assaltado, se alimenta mal, cuida mal da saúde, é relaxado com a educação dos seus filhos. É um círculo vicioso. 

Eu defendo que a sociedade e o poder público não podem mais ignorar essa situação da pobreza urbana, achando que ela será resolvida com transferência de renda. A transferência de renda pura e simples é nociva. Se você for um revolucionário marxista irá achar que ela é um instrumento de cooptação das classes trabalhadoras ou do lumpemproletariado, que perderá assim a sua capacidade de ação revolucionária direta. Se for um liberal irá achar que essas pessoas tenderão a se acomodar e não buscar sair daquele estado de coisas que se encontram. Eu tendo a concordar com os dois lados da moeda. As políticas de transferência de renda precisam ser passageiras e totalmente atreladas com outras ações de maior porte do estado, como planejamento familiar, oferta de ensino adequado, garantia de segurança pública e transporte, reurbanização, oferta de cultura de qualidade que possa elevar e integrar essas comunidades pobres, tirando-as da cultura de gueto que muitas vezes estão enfurnadas. 

Minha visão de problemas urbanos como esse é muito distinta daquela que o autor do livro tem. Assim como ele eu também sempre fui pobre, mas meus pais tinham cultura e souberam me transmitir alguma dessa cultura. Ainda que as revistas que eu pudesse ler não fossem novas, a leitura sempre enriqueceu e trouxe parâmetros novos. A cultura musical rica dos meus pais não me levou para nenhum gueto. 

Já escrevi e defendo um amplo plano de reurbanização de favelas e política pública severa de combate às invasões. Vamos ajudar a essa população pobre a ter o ser apartamentozinho da Cohab. É bem mais digno. E quem tenham transporte público na porta, e escola de qualidade para si e para os seus. E quem possam ter emprego e se o governo tiver que transferir renda, que dê como complemento para quem tem já carteira assinada. Você trabalha e ganha um salário mínimo do seu patrão, é arrimo de família? Tome então mais 300 reais para complementar a renda. Dar dinheiro só por dar, para sustentar a vadiagem não é mais possível. Esta é uma grossa generalização, mas é assim porque há muitos casos.


quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Memórias de Pinheiros

 Em Pinheiros, 2020 em seus fins, estava parado dentro do carro, numa esquina, juntando forças para me levantar e caminhar uns poucos passos para entrar na igreja. Era uma época estranha. A rua que era sempre cheia de pessoas com vida externa, aparente, nos bares e botequins, estava naquele dia esvaziada. Bairro burguês, de gente que acredita na imprensa, muitos com medo paralisante do vírus. Não há cultos aos sábados na igreja de Pinheiros, mas, quando houve o retorno controlado aos cultos, após a reabertura dos templos, os dias passaram a ser uniforme. Quinta, sábado e domingo, se não me falha a curta memória. 

Ali em Pinheiros a igreja é vazia. São poucas as famílias que frequentam, a maioria idosos já no quarto final de suas vidas terrenas. Outrora aquela igreja esteve cheia, mas a mudança no perfil do bairro, que passou a ser, em vinte anos, essencialmente um bairro chique e lotado de restaurantes, bares e baladas, afastou parte dos frequentadores comuns de igrejas. Eu gosto de ir lá justamente porque é uma igreja vazia. Vazia e antiga, de tons beges, ao contrário do azulejado branco que se tornou padrão na última década nas congregações. 

Antes das nove da noite, quando o culto acabou, eu sai, sozinho e voltei para o meu carro. Fiquei reparando numa vilinha que tem ali na Padre Carvalho. Também em uns sobradinhos sem garagem que há na esquina com a Marcos de Azevedo. Olhei o movimento e senti um sentimento que não sei nem como chamar, se saudosismo de uma imagem idealizada e não vivida (ou pouco vivida). Quando eu tinha onze anos ia numa sorveteria com meu pai, para tomar um picolé de groselha por ali. Hoje não tem mais sorveteria ali.


segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Sobre livrarias e memórias

 A primeira recordação que tenho sobre ir em uma livraria, já no caso uma megastore, foi em 2007, na Fnac do Shopping Morumbi. Naquele ano eu estava no 3º colegial e participei de um concurso de redação sobre meio ambiente, patrocinado pela Bayer do Brasil. A fábrica da Bayer era vizinha da nossa escola, no Socorro. Como prêmio pelo terceiro lugar no concurso ganhei um voucher da Fnac. Lembro que nunca tinha ido até o Shopping Morumbi e achei tudo ali um pouco classe média demais para o que eu estava acostumado até então. Os shoppings que eu estava mais habituado a frequentar eram mais simples e atendiam a um público menos seleto, como o Interlagos (em cujo cinema assisti meu primeiro filme, Gasparzinho), o SP Market (que tinha o ótimo Parque do Gugu), o Fiesta e o Center Sul (depois Boa Vista). 

Com aquele voucher que ganhei eu comprei um dvd do Paul Mauriat e um cd de seleções de trechos de ópera para corais. Os dois reais que sobrariam foram usados para adquirir um conjunto de canetas Bic Crystal. Foi a primeira vez que eu fui ali naquele shopping e também em uma livraria moderna, como a Fnac. Me lembro que era tudo muito novo pra mim. Achava graça e algum espanto no ambiente todo com carpetes bege, pilhas de cd's em promoção, dvd's, livros de autoajuda, aquelas estações com fones de ouvido para ascultarmos demonstrações de cd's. Era algo muito interessante. Àquela altura não me chamavam tanto a atenção os livros. A leitura foi algo que a faculdade me obrigou a despertar, não tinha o hábito, mesmo morando a 1 km de uma biblioteca pública, onde fiz minha carteirinha com 12 anos. 

 A segunda megastore que me recordo ter ido foi justamente outra Fnac. A loja subterrânea da Avenida Paulista. A sensação de descobrimento foi a mesma. Depois, já de 2010 para frente eu comecei a ir mais lá. Cheguei a ir com um ou dois amigos da faculdade também. Me lembro que comprei muito barato lá os dois volumes do livro do Raymundo Faoro, Os donos do Poder, da Editora Globo. Comprei outros livros que não me recordo mais. Era um tempo de pouquíssimo dinheiro e pouca margem para comprar o que não fosse essencial, inclusive para leitura da graduação, que era mais recheada de xerox e textos digitalizados. Depois quando comecei a trabalhar e a ter salário é que iniciei a montagem da minha coleção de livros, hoje por volta dos 600 volumes (e que cresce vegetativamente). Quando a grana passou a ser um pouco mais liberal comigo aí já a internet reinava na aquisição de livros. Ainda assim comprei online muita coisa na Fnac e na Livraria da Folha. As duas marcas fazem falta no meio digital. Eram boas concorrentes e se podia achar coisa lá em promoções melhores do que as da Amazon, eventualmente. 

A verdade é uma só, o público que consome livros é mais selecionado do que aquele que compra coxinha na promoção do Ragazzo e casquinha do McDonalds. O brasileiro lê pouco e lê mal, mas ainda assim é um brasileiro mais seleto do que a média do povo. Manter uma livraria custa caro. Ainda mais megastores que tinham de bosta a bomba atômica, como eram as lojas da Fnac. 

Inclusive, o que me motivou a escrever esse texto foi o descobrimento por minha parte do Ática Shopping Cultural, em Pinheiros. 

A falência da Livraria Cultura, outra queridinha dos leitores, trouxe à superfície o saudosismo de muitos leitores, que inclusive desenterraram uma foto da Ática Shopping Cultural. Eu sabia que existia a Fnac de Pinheiros (ou melhor, que ela havia existido), mas não sabia que ali havia tido este outro empreendimento primevo. Um local enorme, com três andares que prometia ter todo o tipo de literatura, multimídia e equipamentos de informática. Se eu tivesse meus trinta e poucos anos lá em 1996 (e não 6, como foi o caso) eu teria adorado frequentar aquele lugar. 

Foto: Cristiano Mascaro - Fonte: Revista Projeto (2023)

Aliás, legal ver nessa foto é também a fonte usada pela Editora Ática antes de ser engolida pela Abril e se concentrar apenas em livros didáticos e paradidáticos. Tenho alguns livros aqui dessa fase da Ática.

Agora, sobre a Livraria Cultura: sempre muito bonita, sortida e agradável, mas sempre muito cara, seja na loja, seja no site. Eu ia perscrutar autores e títulos lá, mas comprava na Saraiva ou na Fnac. A estratégia de não ser competitivo em preços era uma burrice, sobretudo em tempos em que o trovões anunciavam a chegada barulhenta da Amazon (e de outros marketplaces generalistas -- hoje é capaz de se achar preços melhores no Mercado Livre ou na Magalu -- os livreiros ainda não entenderam esse fenômeno).

Em tempo: leio que a Saraiva parece estar se dando muito bem em sua recuperação judicial. Menor, mas saudável. Que bom. É uma marca de respeito, a maior livraria que já tivemos. Que fique mais cem anos viva.

terça-feira, 1 de março de 2022

Ao templo.

 Quando levei o Vinícius no Brás nós vimos algum mendigo, ou pessoa desvalida, em alguma situação na igreja. Não lembro se entrando na portaria da Rua Visconde de Parnaíba ou lavando-se no banheiro. Eu comentei que isso não era algo comum, coisa que fosse vista com regularidade em uma igreja Protestante, em especial na Congregação. Fui redarguido que se tratava de coisa corriqueira em igrejas Católicas. Fizemos alguma rápida digressão à la Max Weber sobre o Calvinismo e o instituto das esmolas no protestantismo. Entramos.

Uma vez congregando a tarde em um certo bairro, vi um doido sentado no chão do páteo da igreja e me lembrei da conversa do Brás.

Ontem, em uma outra congregação, todos os elementos estavam presentes. Ao entrar na igreja um vendedor de balas (o comércio em frente as congregações está desaparecendo). No pórtico do átrio, um gordo bêbado sentado num degrau. Sento-me num banco dos fundos, tendo ao meu lado um irmão Jeca Tatú, estereótipo perfeito do caipira de terninho surrado e camisa xadrez, que desembarcava do interior na Estação da Luz, com sua sacola simples de pertences. Ao lado, ou melhor, na frente, dois velhos irmãos, fiscais de quem entra e sai do templo, fiscais de quem usa ou não usa corretamente a máscara sobre o focinho. Tempos modernos, mas os personagens perenes continuam a povoar a casa de Deus. Alguém mais dado às letras poderia transformar essas memórias em uma bela crônica. Não eu.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Professores

Não me recordo ao certo em que ano isso aconteceu. Sei que foi na linha 1, azul, creio. Não lembro também se foi na época em que estava na faculdade. A julgar pela conjunção dos fatos é provável. Contudo, não estaria surpreso se isso tivesse ocorrido antes.
Nunca decidi me tornar professor. Isso é uma vocação. É a predisposição para falar, para explicar, para mostrar os fatos. Quando estava na escola sempre me dei melhor com geografia, em razão dos professores dessa matéria serem, normalmente, mais legais e interessantes do que os de história. O perfil dos meus professores de história, na escola, sempre foi muito sisudo, fechado, um pouco arrogante mesmo. Tirando a professora da quinta série, que na verdade era bem dinâmica e gostava de despertar a nossa imaginação, nos provocando viagens imaginárias ao Egito ou à Grécia, todos os demais não se destacavam para mim pelo seu carisma, tampouco pela maneira voluntariosa com que ensinavam. No ensino médio tive professores que quase nada explicavam. Era o uso do livro, da apostila ou do texto em lousa e quase nada (ou mesmo nada) de exortação. No primeiro ano uma professora mal encarada, com cara de tia infeliz (dr. Paulo Maluf diria que professoras não são mal pagas...). Não explicava e era brava. Ela saiu antes do fim do ano e veio um substituto novato, que nos aconselhou a comprar um livro didático da disciplina (na época, os livros não eram gratuitos no ensino público). Lembro que ele era anarquista e rockeiro, Leitor do Nietzsche. Conversava conosco, mas também não tinha o tom professoral que julgo ser fundamental para todo o docente. Ele chegou. inclusive, a comprar um jaqueta de couro velha, que estava a venda no brechó de garagem da minha mãe. O vi mais duas vezes. Uma, na Fuvest, acho que de 2008 ou 2009, onde se não me falta a memória, ele estava prestado letras (e eu jornalismo ou geografia, depende do ano). Da outra vez ele era mesário na seção eleitoral em que voto. 
No segundo e terceiro anos do Ensino Médio tive aula com um professor que tinha uma excelente formação e boa leitura. Era formado na Unicamp. Era do interior, Não lembro se de Campinas mesmo. Um esquerdista típico do petismo de raiz. Eu sempre conversava com ele, mas ele pouco explicava para a sala. Tenho guardadas as xerox da suas aulas até hoje.
Nenhum desses professores da disciplina em que sou formado me serviu de inspiração para dar aula. As minhas duas inspirações vieram de três geógrafos. Um da quinta série, outro da sétima e mais um da oitava e do primeiro ano. Pessoas legais. Foram meus modelos. Dois deles ainda dão aula. Um já se aposentou. Na quinta série o professor fazia conosco vários quizes e nos dava bombons de prêmio. Era desafiante. Eu adorava essas disputas pelo conhecimento sobre capitais, moedas, acidentes, relevos, climas e afins. Na oitava e no primeiro, o professor era uma voz com quem eu podia dialogar sobre temas das ciências humanas e da política com um pouco de seriedade. Eu era ouvido por uma pessoa de vasto conhecimento enciclopédico e de notável organização. Em parte da sétima série tive o professor mais disposto: mais um esquerdista daqueles do tipo antiamericano, mas eu adorava ler os textos que ele passava na lousa sobre a "invasão cultural norte americana", até da letra dele eu me lembro e me lembro também que eu mesmo imitava esse tipo de letra.
No metrô, algum dia, eu ouvi dois rapazes comentando sobre uma aula. Um deles falava sobre um professor de história, que arrisco dizer, havia ministrado uma explanação sobre a Primeira Guerra Mundial. O sujeito falava sobre esse docente, que imitava um sérvio bêbado. Pensando bem, talvez fosse um professor de geografia mesmo, falando sobre a Guerra da Bósnias e o malfadado Slobodan Milosevic. De todo modo, aquilo me levou a fantasiar sobre um professor, trajando um terno cinza mal ajanbrado, imitando um sérvio alcoolizado com razões pedagógicas. Foi um modelo docente que me serviu de inspiração, mesmo sem saber quem seja tal pessoa.
O professor precisa ter algumas qualidades. Uma visão integral do conhecimento e das ciências. Vasta cultura. Oratória, para saber modular a maneira como emposta a voz e faz com que a narração e a explicitação dos fatos não se torne monótona. Precisa também saber a hora de parar, o momento em que o Tratado de Versalhes precisa ser explicado com uma piadinha sórdida sobre os alemães. Uma vocação, claramente.

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Equações sentimentais

Em um diálogo, dias desses com um amigo, estava falando sobre uma teoria que desenvolvi, com base na experiência própria, a respeito do cálculo do amor.
Terminar um relacionamento é sempre algo muito complexo e circunstancial. Depende de uma série de fatores. Como se deu o rompimento, por que razões, se foi amistoso ou não, se se foi a parte ofendida ou não, se esse relacionamento envolveu amor real ou simples paixão e outros tantos elementos.
Sou da opinião que um amor não pode ser jamais apagado. Diria que ele é como uma tatuagem, que uma vez feita, dificilmente poderá ser removida sem que deixe marcas e cicatrizes, mas hoje já existem meios, usando lasers, de se remover uma tatuagem sem deixar uma só marca profunda. Se fosse possível encontrar uma forma de se esquecer um amor e removê-lo, definitivamente, do coração, eu estarei muito feliz, mas não faria hoje grandes esforços para me submeter a este "tratamento".
A alternativa não é buscar substituir o amor por outro sentimento. Quem já amou alguém, morrerá com esse mesmo sentimento. O que pode ser feito é esconder deliberadamente esse amor em algum compartimento recôndito do coração, de modo a fazer com que ele seja apenas uma caixa cheia de lembranças em um canto qualquer. Ela está lá. É um elemento incômodo na paisagem, mas ninguém tem coragem, nem condições de se livrar daquele entulho.
Para saber se aquilo que você sentiu por uma pessoa foi amor ou só paixão, é preciso levar alguns elementos em consideração, sempre colocando o objeto do cálculo em comparação com outro relacionamento.
Pense e considere: o que você sentiu por aquela pessoa foi mais ou menos intenso do que o que sentiu por outras pessoas? Leve em ponderação o tempos dos relacionamentos, o grau de intimidade e grau da confiança existente na relação. Equacione esses elementos e, POR COMPARAÇÃO, chegue a conclusão se você amou ou não alguém.
Veja, isso apenas serve para fazer o diagnóstico, mas não é a receita para a cura da dor do fim de um relacionamento (jamais do fim de um amor, por que amor não tem fim!).
Como lidar com esse processo é sempre difícil dizer e dar uma posologia e dizer qual o remédio. Mas, leve sempre em consideração que você não vai nunca eliminar o sentimento que você construiu. Ele vai permanecer lá. A saída principal é desenvolver um sentimento ainda mais intenso por uma nova pessoa, porém, deixo aqui o conselho: procure desenvolver esse sentimento apenas pela pessoa certa, por aquela que você vai passar o resto da vida junto, não por que seu amor seja o mais puro e imaculado que exista, mas por que simplesmente você precisa e quer permanecer junto. Com essa pessoa você deve ter o maior amor, o mais forte amor, o amor mais intenso. Esse amor nunca sumirá e ainda dará para ti o instrumento para poder fazer com que o primeiro amor fique ali, escondido, mas como um elemento que você dificilmente irá notar, na paisagem histórica da sua vida.

sábado, 23 de setembro de 2017

Memórias docentes

Certa vez, dava eu aula em uma determinada escola estadual. Esse colégio desfrutava de uma considerável fama positiva na região, como sendo uma escola muito rígida, onde imperavam certos padrões que hoje caíram em desuso na maior parte da rede estadual de ensino, como o uso de uniforme, fazer fila na hora da entrada, cantar o hino nacional ou rezar a oração do Pai Nosso. Centros de educação pública onde isso ainda ocorre não são a regra, mas completa exceção.
Dar aula em escola onde, pretensamente, impera um certo modelo tradicional, amarrado aos moldes da educação do passado, as vezes é bem mais difícil do que lecionar em colégios mais flexíveis, onde a direção da escola costuma fazer vistas grossas para todas essas tradições e dar mais liberdade para que o professor, dentro das quatro paredes que fazem uma sala de aula, tenha mais liberdade para dar da maneira que lhe aprouver. 
Tive essa experiência. Escolas públicas onde o tipo de aluno médio presente é o pobre com ares de classe média são as do pior tipo. Plínio Salgado disse uma vez que a burguesia, antes de constituir-se como classe social é um estado de espírito. Nada mais correto. O estado de espírito do jovem pobre (não miserável) ou de classe média baixa é o mais burguês possível. Hedonista, individualista, sem capacidade de olhar a sociedade e buscar compreende-la. Este jovem não liga para a politica, mas tem todos os velhos ranços burgueses, conseguindo ser, ao mesmo tempo, reacionário no que toca a sua vida privada mas progressista quando externa sua opinião e participa como eleitor numa eleição.
Numa determinada turma, desta determinada escola que dei aula e que não citarei o nome, eu tinha diante de mim uma classe que parecia ter saída direto do estúdio do PROJAC, da Rede Globo no Rio de Janeiro. Eu chamava naquela época, ao comentar com alguns outros colegas professores (aqueles professores pelo menos que não padeciam das mesmas moléstias de espírito dos alunos) que aquela sala é a "Classe Malhação", em alusão direta à novela juvenil da Vênus Platinada.
Eram alunos de uma capacidade intelectual pouco desenvolvida. Não conseguiam desenvolver em um patamar satisfatório as habilidades e competências que se pode esperar de um jovem de 14 anos. Grandes dificuldades para ler e compreender textos simples dos livros didáticos, tampouco produziam algo escrito que pudesse ter algum valor. Enfim, boçais.
Estes boçais, contudo, tinham pais e estes progenitores possuíam os mesmos defeitos de sua prole: a arrogância, a soberba, o egoísmo, o vazio cultural e espiritual. Uma pura nata pequeno burguesa, que ao mesmo tempo em que se sente superior aos demais por andar em um carro do ano, modelo 1.0 financiado em 72 vezes também se delicia vendo o programa do Luciano Huck, quando não tem por programa vadiar em shoppings centers.
Uma sala que nada produzia, mas por seu perfil, atraia especial atenção da direção da escola, que sabia que aquela turma, considerada letra "A" teria que ser a elite do colégio e responsável por alavancar os índices nas provas e avaliações que o governo faz (o saresp), que é aquela prova que faz com que os professores possam a vir ganhar um bônus em seus salários no ano seguinte. Um conjunto de crianças sobre a qual se depositava tamanha expectativa não poderia ter tantos defeitos como os que eu aqui relato. Isso era o que a diretora e sua vice pensavam. Nesses casos, a corda sempre acaba arrebentando para o lado mais fraco, o professor novato.
A conversa vai ser sempre a mesma: "o professor não consegue dominar a classe"! Quando não o diretor é mesmo capaz de falar que tem aluno que sabe mais do que o professor (há, mas é raríssimo, não por mérito dos pouco qualificados docentes, mas por deficiências ainda maiores dos alunos).
Foi um ano, com salas que me davam desespero. Não há outro sentimento a descrever senão o desespero diante de uma indagação, do que fazer com alunos tão ruins, imaturos e soberbos. A saída, por divina providência, foi não mais dar aula para estes indivíduos. Não guardo praticamente nenhuma memória positiva dos alunos que tive no ano de 2013, nem da escola onde trabalhei naquele ano. 

quinta-feira, 20 de julho de 2017

Nunca assisti Kiarostami

Quando jovem sempre lia algum encarte de jornalões que me parava nas mãos. O guia cultural da Folha ou do Estadão. Era uma espécie de revistinha, impressão também em papel jornal, que trazia as principais novidades da agenda cultural de São Paulo: novos restaurantes e botecos, peças de teatro em cartaz, musicais, concertos e shows e filmes em exibição nas salas de cinema de rua e dos shoppings centers. 

Na parte dos filmes, me recordo que uma presença sempre constante era a do diretor persa-iraniano Abbas Kiarostami. Via frames de seus filmes, sempre trazendo imagens belas e dramáticas do Oriente Médio, em uma época em que os Estados Unidos estavam encrencados tanto no Afeganistão quanto no Iraque. Eu, 14 ou 15 anos (talvez um pouco menos), conseguia fazer relações entre os filmes, que nunca assisti, desse diretor, com a situação geopolítica do Médio Oriente.

Ontem assistindo um filme dinamarquês de suspense policial (nada demais, mas gostei do silêncio nórdico, Departamento Q - Uma conspiração de fé) me recordei de buscar filmes cult, que apreciem o silêncio como recurso técnico e me lembrei de Ingmar Bergman e Persona, recomendado por meu irmão mas que não tive paciência para assistir e, na sequência, me lembrei também de Abbas Kiarostami. Fui ver sua filmografia e descobri que ele morreu no ano passado.

Não fiquei sabendo de sua morte. Ele era uma espécie de figura cult de intelectuais, que eu sabia que existia, que era comentado e assistido, como são lidos e comentados certos pensadores (Derrida, Foucault, Guatari e Deleuze). Nunca o assisti seus filmes assim como nunca li obra alguma dos filósofos citados. 

Escrevo sobre Kiarostami por que seu nome, de certa forma, faz parte da minha juventude. Faz parte como também fazem parte todas as demais memórias que tenho de lugares, pessoas, momentos, ruas, viagens de ônibus, minutos em que passei sentado em uma determinada cadeira, relacionamentos da escola e da igreja. É uma pecinha do puzzle do meu passado.

Quando escreve isso, o tempo passa e no quarto ao lado, minha mãe assiste a TV, vendo notícias, como também no passado fazíamos. Eu sou refém das sensações passadas da minha vida.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

De volta aos supermercados

Voltando a esse tema depois de mais de três anos (http://lusosp.blogspot.com.br/2009/11/saudades-dos-supermercados-noventinos.html), pois eu sinceramente não sei o que me acontece, já que muitas de minhas lembranças de infância passada em São Paulo, sempre tem como um elemento da paisagem os supermercados.

Eu me lembro de uma cena, lá em 1996, quando num determinado dia, após ter ido em um protético na Avenida Morumbi, para tirar um molde para um aparelho dentário móvel, que pouco usei, pois jamais me adaptei àquele treco, aliás outra coisa: ainda se fazem moldes de gesso dos dentes das pessoas quando se vai fazer um aparelho? Enfim, saindo do protético com meus pais, a bordo de um belo Santana, descemos a avenida rumo a Marginal Pinheiros e fomos ao mercado da Rede Peralta, que segundo o que me consta, ficava na Avenida Morumbi mesmo.

Lembro, se não estiver redondamente enganado, que este Peralta tinha dois andares, como o Extra da Brigadeiro Luís Antônio também tem. No segundo andar daquele chique supermercado ficava a área de vestuário, muito bem organizada, melhor do que qualquer setor de vestuário de outro mercado que já tenha ido, seja Wal-Mart, Extra ou Carrefour. Ah, sim, lembro também que vendiam uns blazers daqueles que hoje estão meio fora de moda, mas que eu acho chiquerrimos, que são aqueles paletós que fecham entrecruzado, deixando todo mundo (ou quase) com cara de inglês. Tenho um desses azul.

A outra lembrança que tenho do Peralta era da sacolinha: amarela, escrita Peralta em azul, na transversal. Acho que tinha também algum símbolo, mas não tenho certeza disso.

Procurando na internet, li no site do Pão de Açúcar, que a rede foi incorporada ao Grupo do Abílio Diniz  em 1999
1999 – Em fevereiro de 1999 foi adquirida a rede Peralta de Supermercados, composta por 37 supermercados e 1 hipermercado. Em agosto do mesmo ano, associou-se ao Grupo francês Casino, adquirindo 24,5% do controle (faturamento em 2006 de €$ 35.064 milhões).
E assim continuo com esse negócio de supermercados.

O paulistano eterno

 Me identifico com o paulistano que mora na casa que restou numa rua em dissolução. É como o velho morador de Pinheiros, que habitava uma ca...