"Papai em 80 mudou-se da capital para cá, quando passou no concurso de procurador da câmara municipal. Ele e mamãe já estavam juntos há coisa de três anos. Protelaram a chegada de um rebento por mais de dez anos, até que vim ao mundo. Menino, com cinco anos, foi matriculado no colégio particular de maior renome da vila, o que significa estar reunido com cerca de mais vinte crianças, maioria composta por filhos de vereadores e comerciantes locais. A escola não difere muito da cara que tem uma escola estadual, até a pintura verde claro com branco e as carteiras fabricadas por detentos são as mesmas. A história das aventuras e rotinas que ali tive cabem em um escrito à parte. As primeiras brigas, a primeira namoradinha, as excursões para o zoológico e o parque aquático, coisas que crianças urbanas passam. Nada de anormal, mas, o que é mais interessante do que nossas vidas monótonas, desde que contadas de forma pitoresca, não é verdade?
Terminado o colégio, prestei o vestibular para entrar na USP e consegui uma proeza: ser aprovado para o curso de ciências contábeis. Hoje acresceram o vocábulo "atuariais" ao nome do curso. Não sou despachante, nem faço seguros. Mexo com folhas de pagamento e duplicatas. Ter passado quatro anos no ônibus entre o Butantã e Itapecerica me concedeu tempo demais para me enfadar da profissão antes de me consolidar nela. Trabalhar num escritório aqui é um tédio, assim como quase tudo por essas bandas. Novidade é o assunto no quilo do Centro, quando a Polícia resolve fazer uma limpa aqui, deixando cinco neguinhos mortos e mais uns três pendurados para o dia seguinte. Fora isso, novela e futebol.
Na quarta-feira eu trabalhava normalmente. Ainda que o feriado fosse no meio da semana, sem que pudesse enforcar qualquer dia, uma pausa seria bem vinda, mas, havia trabalho pendente e clientes enchendo o saco por mensagens e ligações. Sorte a de todo o tipo de burocrata de hoje que os sites com sistemas dedicados estão aí. Geram planilhas, cuidam da transmissão de dados para a Receita Federal, o recolhimento de impostos, nos avisam quando licenças e alvarás estão por vencer e várias outras funções bastante bem vindas. Sem essas ferramentas o trabalho seria mais moroso, quase artesanal, como era até os anos 1990. Imagine a maluquice para a geração de hoje a ideia de ter que preencher um cheque e, ao pagar com ele, aguardar um telefonema do comércio para consultar se aquele meio de pagamento era um "borrachudo" ou não.
Contratamos no escritório uma versão paga dessas inteligências artificiais. A concorrência está usando isso para ter ganhos de tempo com a geração de análises de planilhas e com a criação de outras planilhas mais. É um fluxo. Mandamos uma vazia para a empresa e a empresa, via sistema, vai preenchendo ela e mensalmente nos devolve. Nosso trabalho é pegar esses dados, avaliar e pensar em como podemos fazer o cliente escapar do fisco aqui ou ali. Ou se o recolhimento de FGTS dos funcionários está sendo pago corretamente. Ou ainda o controle de validade dos exames de saúde ocupacional. Antigamente tudo isso era feito à mão na própria empresa. Hoje, são os sistemas que cuidam disso e nós gerenciamos esses sistemas para as empresas preguiçosas, quero dizer, eficientes.
Comecei a brincar com a versão paga do chat. Quais serão os números da Mega Sena? Qual a idade do José Sarney? O governador Lucas Nogueira Garcez (aquele que fechou as zonas da Rua da Graça, no Bom Retiro) era homossexual? Tancredo Neves ainda está vivo? Qual a marca da pinga que o Lula bebe? Existe o jogo do leãozinho? Tadalafila impede a queda de cabelo? Adolf Hitler se casou com uma mulata no Mato Grosso? Onde é a entrada para Agartha em Embú das Artes? Quem tapou o buraco do Adhemar? Como tirar folga de volante do Passat 87? Essa última questão era de elevada pertinência. Dr. Adilson, meu chefe no escritório tinha uma tranqueira velha sobre rodas, que era esse Passat e dele fazia verdadeira adoração. Todo dia ele passava vários minutos na hora do chá falando que o Passat precisa ir de novo para a oficina, que precisa trocar a pastilha de freio, que tá vendo no Mercado Livre se encontra uma tampa do radiador, que no sábado vai subir o carro com um jacaré (aqueles elevadores manuais maiores, que tem em oficinas mecânicas -- os nossos, pequenos, que temos nos carros são os famosos "macacos", isso porque eles nos quebram os galhos!) para tentar fazer uma micro funilaria nos podres do assoalho. A última ladainha era a folga no volante. Eu não tenho ideia de como tirar a folga de um volante de qualquer que se o carro. Talvez o Passat, por ser Volks mais antigo, seja mais simples até do que de um modelo dos anos 2000 para cá ou os todo-tecnológicos carros atuais, elétricos, híbridos, cheios de guéri-guéri.
Anotei num pedaço de papel para amanhã os números que o chat me deu, em resposta à primeira questão que lhe fiz. Amanhã a Casa Lotérica estará aberta e vou jogar as seis dezenas. Se esse bicho é esperto, vai que ele acerta. Se bem que é claro que eu não sou o primeiro sabichão que deve ter perguntado isso pra ele (aliás, ele ou ela, o chat tem sexo?). O Sarney vi que está com 95 anos e, benza-deus, não pega uma gripe, não dá uma topada numa pedra, não tem um joanete. O homem é mesmo um portento! Estava semana passada na Faculdade do Largo São Francisco falando sobre a "Constituição Cidadã", esse amontoado de letras e frases dividido em artigos, parágrafos e incisos que dizem que garantem os nossos direitos. O chat não foi claro sobre o senhor Lucas Nogueira Garcez, na época os jornais não tinham a liberdade de fazerem insinuações de teor sodomítico com o governador do estado. As zonas foram fechadas por questão de moral e ordem pública mesmo. Aliás, é coisa que está muito em falta ultimamente. Quando é que o nosso governo, que vive arrotando censura por aí contra quem fala mal dele vai começar a coibir a pornografia da internet? Terá essa coragem que poderá levantar uma turba silenciosa de onanistas? A ver. Tancredo Neves, no corpo estava morto, mas em espírito mais vivo do que nunca: dizem que em Brasília toda sexta-feira lideranças do MDB frequentam uma mesa branca onde o médium psicografa mensagens do eterno presidente-eleito para as presentes gerações do Centrão. Gilberto Kassab, Arthur Lira e até o judeu mastodôntico do Amapá, o senador Davi Alcolumbre são habitués da casa. Acho que aquele autor quando pensou em "Necropolítica" estava raciocinando noutros termos, mas, adiante.
Sobre Adolf Hitler ter fugido vivo da Alemanha e ter vindo parar no Mato Grosso, casando-se, ainda por cima, com uma escurinha, a história tem lá os seus indícios: um livro sobre o tema foi escrito, há entrevistas sobre isso no programa do finado Jô Soares, reportagens do Roberto Cabrini, Glória Maria, do Globo Repórter foi in loco investigar a questão, não chegando ela em maiores conclusões, senão que no Mato Grosso além da erva-mate para o tereré há outras ervas fortes das puras, que o pessoal tráz da Bolívia. Voltando para o Rio ela trouxe um meio quilo para passar o mês.
Embú das Artes é aqui. Apesar de estar em casa e de ouvir no centrinho sobre esse papo nas barracas dos hippies, eles nunca conseguiram me dar essa dica. Falaram uma vez que um maconheiro velho dizia que a entrada era embaixo do córrego do Jardim Arabutam. Eu mesmo nem sei onde fica o córrego, talvez perto do Habib's em direção à Régis Bittencourt. O próprio chat não conseguiu achar fontes que dessem respaldo para essa doidera. Aludiu que as pessoas procuram isso lá no Tibet, que um militar russo-germânico se disse o último khan e teria encontrado Shamballa e Agartha, mas, em Embú das Artes que é bom, nada. Quando eu estiver a pé por ali, no Arabutam, dou uma sondada melhor no assunto.
O buraco do Adhemar quem tapou foi o Jânio e depois a Erundina. Está respondido. Não existe mais o buraco do Adhemar. "