sábado, 3 de maio de 2025

A ladeira da minha memória

 Eu nunca conversei com um urbanista. Arquitetos sim, aqueles que ao que conste se dedicam ao planejamento de construções. Um urbanista que pense em problemas urbanos eu nunca conversei. Sei que existem. Até acompanho alguns por aí nas redes, mas nunca tive a chance de sentar com um desses raros profissionais para prosear. Será que eles são tarados por questões urbanas como eu ou como vários busólogos ou entusiastas de transporte costumam ser. 

Só sei que eu, desde os onze anos, sou um apaixonado pelo caótico da cidade. A coisa começou com um guia de ruas Mapograf de 1997, que guardo com carinho até hoje. Ali, época em que eu cursava a quinta série do ensino fundamental, eu comecei decorando nomes de bairros, ruas, ceps, distritos. No mesmo ano um rapaz da minha turma, chamado Tiago e sobre o qual eu não tenho mais nenhuma informação do seu paradeiro, que já era mais avançado, sabia de cor linhas de ônibus, itinerários e códigos delas. Esse menino tinha o pai marreteiro na feira. Era um menino bonzinho. Eu espero que Deus tenha tido misericórdia de sua vida. Ele na época já era office boy, isso com onze, doze, treze anos, que foi a última vez que eu tive notícia dele, pois passei a estudar em outra escola, um pouco afastada de casa, coisa de um quilômetro de lonjura. 

A primeira vez que andei de ônibus sozinho foi no ano 2000. Eu tinha 10 anos. Peguei um ônibus na Avenida Um, imagino ter feito uma baldeação no Rio Bonito e ter pego outro que passasse pela então nominada Avenida Robert Kennedy, hoje Avenida Atlântica. Havíamos mudado de bairro no segundo semestre daquele ano e meus pais estavam preocupados com a minha mudança de escola naquela altura do ano letivo. Se a memória não me trai, fiquei entre agosto e outubro fazendo esse trajeto, não sem muito custo para os meus país, custo em preocupação por pensar no gordinho andando sozinho de ônibus por ai. 

Recordo-me que em agosto de 2000 eu voltando para casa desci um ponto antes e decidi fazer um outro caminho para casa a pé. O suficiente para dar uns vinte minutos de atraso do horário de chegada habitual. Foi o suficiente para causar pânico na família. Meu irmão mais velho do meio e pai começaram e me procurar pelo bairro, foram nos comércios, avisaram a viatura da rádio patrulha. Daqui a pouco chego em casa, com a mochila nas costas. Acho que não apanhei, só levei um esporro qualquer. Mais tarde no mesmo dia já estavam me mandando na padaria ir comprar cigarro. 

Essa aventura de meia milha parece ter sido o fato derradeiro para que meus pais me mudassem imediatamente para uma nova escola, que fica em frente de casa até hoje. Nesse meu período da juventude comecei a andar mais de ônibus. Meu pai não dirigia mais desde fins do ano 2000, já que não tinha carro e enxergava com cerca de 20% da visão, apenas. O ônibus passou a ser indispensável. Era um período em que aqui onde moramos não havia nenhum grande mercado ou atacarejo próximo. Precisávamos nos deslocar de ônibus cerca de 4 quilômetros para a Cidade Dutra (onde havia um Sonda) ou para Santo Amaro, que contava com quatro supermercados na época (Sonda, do Shopping Center Sul - hoje Shopping Boa Vista, o Barateiro, o Futurama e o Sé). Meu pai ainda não totalmente combalido pelas enfermidades buscava trabalhos de pintor ou cuidador de imóveis (espécie de corretor que fica sentado em frente a grandes casas que estejam a venda em bairros finos, a espera de clientes que quisessem visitar a moradia). Nesse período andei bastante a cidade com ele: Pinheiros, Santo Amaro, Santa Cecília, Luz, Sé, Bela Vista, Paulista, Jabaquara, Vila Mariana. É onde me lembro de ter passado com mais atenção na época. As razões eram por trabalho dele, poucas, mas, sobretudo, para ir em médicos (o que aconteceu muitas vezes) e também por passeio ou para ir até a igreja. Foi um período de muito pobreza em casa. Embora não pagássemos aluguel, o dinheiro era pouco e contado. Meu pai era aposentado por invalidez, tinha pouca disposição de saúde para voltar a trabalhar e não tinha muitos ofícios disponíveis. Meu pai foi muita coisa, da miséria à riqueza foi bedel, guarda civil, motorista, vendedor, concessionário de veículos, dono de autopeças, político e por fim, aposentado. Não me consta que fosse vagabundo. Era nervoso, antigo, rústico, grosseiro. O seu casamento com a minha mãe me deixou um precioso ensinamento prático sobre a ideia de jugo desigual, onde ele era 18 anos mais velho, de origem geográfica distinta, cultura distinta da minha mãe. Um paulistano comum de pais interioranos e italianos e minha mãe nordestina. Choque de culturas que fizeram com que eu e meus irmãos presenciassem infindáveis discussões. Minha mãe parece ter sido muito triste e guardar muito arrependimento pelo que passou. Não sei se ela consegue compreender a coisa com o necessário fatalismo. Me parece que ainda tem a ideia de que tudo podia ter sido diferente. É uma inconformista. 

As minhas memórias são muitas e tenho pensado com mais frequência em deixar elas registradas. Evidentemente, para ninguém. Quem teria interesse nelas, quando eu estiver sem mente ou morto? Quem poderá se interessar pelas memórias de um sujeito ordinário como sou, que nada de espetacular fez na história? Talvez os historiadores da micro-história ou da história do imaginário ou das mentalidades. Quem sabe, por pouco tempo, algum ex-colega de faculdade ou do trabalho, ou ainda algum ex-aluno. Eu me interessaria por breves memórias biográficas de alguns deles. O homem é essencialmente um fofoqueiro. O historiador ainda mais. 

As memórias do ambiente, ou seja, da cidade são sempre muito vívidas, pois são objeto da minha preocupação desde essa época. A minha defesa da independência do estado de São Paulo é parcialmente filha dessa preocupação urbana, juntada com a formação de identidade regional. Eu sou eu em Santo Amaro, na Zona Sul e em São Paulo. O máximo da extensão geográfica da minha identidade é o estado. Além disso, não sou ligado à nada e pouco me importa um venezuelano ou um carioca, são iguais, ambos distantes da minha vista e do meu povo. Eu pego o carro e vou para Santos e vejo o paulista, que fala como eu. Vou para Campinas e ali quem vive é um paulista. Além das fronteiras do estado bandeirante nada me importa. São todos iguais ali. 

Terminei de ler essa semana um livro da coleção de livros, há muitos anos publicada pelo Arquivo Histórico de São Paulo. Trata-se do volume de 2019 que conta a história de um bairro que não transito habitualmente, a Vila Missionária. Bairro pobríssimo da zona sul paulistana, que no passado era famoso pela criminalidade e hoje, além da criminalidade é famoso também por ser o local de onde saiu a deputada federal Tábata do Amaral. 

A enormidade de São Paulo nos faz conhecer pouco a própria cidade. Eu devo ter passado de carro, mais tardar, meia dúzia de vezes pela Vila Missionária, indo para alguma igreja nas proximidades do bairro. Mas, quem conhece uma periferia de São Paulo pode dizer que conhece todas. Elas são todas idênticas. São compostas pelo mesmo substrato humano e social. São constituídas de ruas com má divisão no loteamento, com lotes pequenos, muitas vezes mal acabadas, por trechos que ainda intercalam vielas e escadões que levam para as favelas, que costumam, muitas vezes, ficarem nos fundos da área dos terrenos que foram minimamente loteadas (e que, comumente, dão para a avenida ou rua principal). Quem andou no Jardim Iporanga ou no Grajaú, ou ainda no Jardim São Luís já conhece a Vila Missionária, ainda que jamais soubesse da existência de lugar.

O livro escrito sobre tal bairro traz algumas informações bastante interessantes, ainda que o enfoque dado pelo autor, Aquiles Coelho Silva, seja o sociológico e não o memorial. A parte da memória, ainda que sempre presente, serve para levantar a bola para a análise da formação social e econômica da Vila Missionária. O nome do bairro, por exemplo, é em razão do loteamento ter sido feito por uma obra missionária da Igreja Católica, liderado por um padre chamado Aldo. O padre e sua obra missionária pretendiam criar um loteamento modelo, mas, pela forças das circunstâncias, aos poucos foram cedendo às necessidades da população pobre que foi se estabelecendo ali. 

Nas décadas de 1970 até 1990 se tratava de bairro em formação, com ruas de terra, barracos de madeira aos montes, ausência de luz nas ruas, sem coleta e tratamento de esgoto pela Sabesp, com poucas vagas em creches para que as mães pobres que tivessem que ir trabalhar em outros bairros tivessem onde deixar os seus rebentos. Essa realidade não é diferente de inúmeras periferias paulistanas e da grande São Paulo até os dias de hoje. Talvez alguns dessas defasagens públicas tenham sido minimizadas pela ação social do governo, mas, o grossos dos problemas permanecem. A atuação do poder público para os bairros pobres é sempre atrasadas e pouca. O pobre sempre está lascado várias vezes ao dia: trabalha em serviços ruins e de baixa remuneração, recebe pouco, corre mais risco de ser assaltado, se alimenta mal, cuida mal da saúde, é relaxado com a educação dos seus filhos. É um círculo vicioso. 

Eu defendo que a sociedade e o poder público não podem mais ignorar essa situação da pobreza urbana, achando que ela será resolvida com transferência de renda. A transferência de renda pura e simples é nociva. Se você for um revolucionário marxista irá achar que ela é um instrumento de cooptação das classes trabalhadoras ou do lumpemproletariado, que perderá assim a sua capacidade de ação revolucionária direta. Se for um liberal irá achar que essas pessoas tenderão a se acomodar e não buscar sair daquele estado de coisas que se encontram. Eu tendo a concordar com os dois lados da moeda. As políticas de transferência de renda precisam ser passageiras e totalmente atreladas com outras ações de maior porte do estado, como planejamento familiar, oferta de ensino adequado, garantia de segurança pública e transporte, reurbanização, oferta de cultura de qualidade que possa elevar e integrar essas comunidades pobres, tirando-as da cultura de gueto que muitas vezes estão enfurnadas. 

Minha visão de problemas urbanos como esse é muito distinta daquela que o autor do livro tem. Assim como ele eu também sempre fui pobre, mas meus pais tinham cultura e souberam me transmitir alguma dessa cultura. Ainda que as revistas que eu pudesse ler não fossem novas, a leitura sempre enriqueceu e trouxe parâmetros novos. A cultura musical rica dos meus pais não me levou para nenhum gueto. 

Já escrevi e defendo um amplo plano de reurbanização de favelas e política pública severa de combate às invasões. Vamos ajudar a essa população pobre a ter o ser apartamentozinho da Cohab. É bem mais digno. E quem tenham transporte público na porta, e escola de qualidade para si e para os seus. E quem possam ter emprego e se o governo tiver que transferir renda, que dê como complemento para quem tem já carteira assinada. Você trabalha e ganha um salário mínimo do seu patrão, é arrimo de família? Tome então mais 300 reais para complementar a renda. Dar dinheiro só por dar, para sustentar a vadiagem não é mais possível. Esta é uma grossa generalização, mas é assim porque há muitos casos.


quinta-feira, 1 de maio de 2025

Curtas

 Sejamos francos e realistas, a vida na grande metrópole não pode ser democrática, pois, considerando o império do número e do volume, não se pode esperar democracia real. Eleições não significam democracia. Na cidade de São Paulo com mais de dez milhões de moradores não pode haver democracia, pois por seu gigantismo e dinâmica da vida, não pode haver participação do indivíduo nas decisões do estado. A única coisa popular em grandes metrópoles e que realmente é fruto das decisões individuais é o comércio, o mercado. A única manifestação de democracia na metrópole está contida no desditoso livre mercado.

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Populismo: o que começa em fúria termina em fadiga.

Não causaria nenhum espanto que após tanta grita e conflito entre o populismo bolsonarista e o populismo petista um novo governo aparecesse, com um sujeito anêmico, tísico, esquálido, cinza, sem sal e açúcar, que não entusiasmasse, antes passasse desapercebido da opinião pública. Um Eduardo Leite ou um Zema. 

Até que não é má ideia passar um lustro de tédio.

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Leio notícia de que os antigos proprietários da Tok & Stok (não confunda com Tik Tok) compraram a Mobly, que, atualmente, era a controladora da própria Tok & Stok. 

O varejo passa por uma crise gigantesca. 

A margem de lucro dos supermercados, por exemplo, gira em torno de 1,5%, ao ano. Baixíssima. É ramo de risco, ainda que todos dependam dos mercados. 

No ramo de bazar a coisa vai pior ainda. Com a internet se mostrando mais e mais confiável como local para se fazer compras, magazines e lojas de departamento servem mais como mostruário ou como local onde se compra algo quando se está com muita pressa e não se pode esperar o que foi comprado pela internet ser entregue. 

Essa mudança na maneira de se comprar as coisas tem afetado a paisagem urbana. 

Regiões de comércio cada vez mais se veem dominadas por placas de aluga-se. Esse é o grande empreendedor da vez. Andando no Centro de São Paulo o que mais se vê são estabelecimentos comerciais fechados e para alugar. As regiões centrais precisarão ser reinventadas, sobretudo restaurando o império das moradias e o comércio de dia a dia: padarias, vendas, farmácias, quitandas, cabeleireiros, tinturarias, avícolas, etc.

Yakov Chernikhov. "Architectural Fictions," 1933.

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Eu estou convencido que a população mundial do século XXI é obesa e tem outras tantas novas doenças por que estamos sendo envenenados com comida geneticamente modificada, planejada para criar doenças ou mutações genéticas que moldem um homem novo. Um velho italiano que morreu nos anos 1950 passou a vida comendo macarrão todo dia e nunca teve problema com glutem. Bebíamos leite gordo (A ou B) todo dia e não tínhamos intolerância à lactose. Não existia uma epidemia de autistas ou pessoas com Tdah. O que era borderline? 

E, digo mais, não me consta que essa galera que se acha fitness seja mais saudável do que os velhos e velhas do carteado na praça. Podem fazer muito exercício e acharem que comem saudável, mas, se enganam. Não confio nessas coisas que se dizem orgânicas. Pra mim é tudo enganação para uma seita de fanáticos veganos comunistas. Querem comer coisas naturais? Saiam das cidades grandes, voltem para o campo e plantem suas hortas e criem suas galinhas caipiras, com ovos de gemas super amarelas. Ai começamos a conversar.

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Sempre desconfiei.

Em algum momento fui levemente simpático à Igreja Presbiteriana do Brasil.

Se fui, não sou mais.

Hoje tenho mais simpatia por todas as demais igrejas históricas: luteranos, anglicanos, morávios, metodistas, salvacionistas, batistas e tais.

Apesar de crer que ideia da soberania absoluta divina, nisso incluindo a questão da predestinação das almas eleitas para a salvação, tal como eles calvinistas presbiterianos dizem crer, vejo a Igreja Presbiteriana como uma denominação que não procura manter um diálogo aberto com as demais denominações. Como dão muita ênfase ao estudo teológico, numa época de grande vaidade intelectual onde não é cult ser pentecostal, acabam atraindo evangélicos de outros ramos pelos encantos e vaidades da retórica. Azar o daqueles que se deixam atrair por esse falso brilho (como aqueles que procuram o catolicismo pelo esplendor litúrgico ou arquitetônico, ou os que procuram as igrejas ortodoxas pelo tom soturno de seus rituais). 

O calvinismo é sinônimo de presbiterianismo. Não sou calvinista. 

O contador

 "Papai em 80 mudou-se da capital para cá, quando passou no concurso de procurador da câmara municipal. Ele e mamãe já estavam juntos h...