segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Comentários sobre o filme "Doze horas até o amanhecer"

Doze horas até o amanhecer

Ano: 2006

Direção: Eric Eason

Elenco: Brendan Fraser, Yasiin Bey, Scott Glenn, Catalina Sandino Moreno, Matheus Nachtergaele, Alice Braga e Milhem Cortaz.

O filme foi rodado e se passa em São Paulo. Essa foi a principal razão que me levou a assistir esse filme, que descobri por acaso vendo um vídeo da cena de abertura, que passa um belo skyline de capital Paulista em um tom azul, ao cair da noite.

Atenção SPOILER!


A película narra a história de uma família desestruturada, onde Brendan Fraser é filho (e sócio) de Scott Glenn em um prostíbulo no Centro de São Paulo, que mantém ainda por cima uma relacionamento as escondidas com sua madrasta. Pai e filho resolvem encontrar um meio para resolver seus problemas financeiros mais imediatos traficando um maleta cheia de cocaína, em direção ao Porto de Santos, contudo, é aí que os problemas se tornam mais fortes: a "mula" (o entregador das drogas) era um nigeriano, que acaba morrendo com uma parada cardíaca no momento de uma cópula e os traficantes internacionais em Santos são africanos e só aceitam negociar com quem fale Iorubá. Nisso, o cozinheiro da zona, vivido por Yasiin Bey entra em cena, para substituir a "mula" original.

Uma série de tentativas frustradas de golpes e tramóias são dadas sem que nenhum dos envolvidos consiga encontrar uma saída que atenda às suas expectativas iniciais. Nesse sentido, o filme trabalha com uma sequência de frustrações e decepções. 

O filme é interessante pela exploração da paisagem paulistana como um cenário perfeito para todo o tipo de trama o que mais uma vez demonstra o enorme potencial de nossa cidade como locais para gravações e que é subutilizado nisso.

No geral, o filme é lento, sem expressão e sem grandes novidades. É um filme ruim, para televisão.

domingo, 19 de novembro de 2017

RESENHA: J.J. Veiga "Sombras de Reis Barbudos"

Capa de uma edição antiga, do Círculo do Livro, de Sombras de Reis Barbudos. Na infância tivemos em casa um exemplar como esse por mutos anos, até que ele acabou sendo alvo de cupins e da chuva, se não me falha a memória. Foi para a doação ou para o lixo, não me recordo bem. Recentemente li esse livro, após encontra-lo em um espaço de compartilhamento de leitura de um parque público paulistano. Outra versão, também velhinha, sem capa, do Círculo do Livro. Vemos ai os muros e os urubus.

Diversos autores, ao longo da história, escreveram obras que tiveram como enfoque imediato a defesa da liberdade humana como valor fundamental e como princípio, que quando se faz ausente, mostra toda a sua necessidade para aqueles que passam a sofrer as privações advindas da tirania. José J. Veiga em "Sombras de Reis Barbudos" nos vem dar uma excelente demonstração de como a vida humana pode se tornar trágica em um ambiente onde a liberdade passa a ser constrangida.

Ambientada em alguma cidade do interior durante o período do Regime Militar, embora no livro não sejam citados nem o nome real da cidade (na ficção é Taitara) nem mesmo uma referência expressa sobre o período 1964-1985, podemos, no entanto, entender que a história se encaixa perfeitamente nesse contexto.

Lucas, um menino é o principal personagem e o narrador da história. Tudo ocorre quando uma grande firma chega na cidadezinha, trazida pela tio do garoto. Pela narração vemos o tipo do sujeito que saiu do rincão e foi pra cidade, onde prosperou no setor privado, voltando triunfante para sua terra, agora com os ares de novo e aclamado rei, atraindo a boa vontade e o entusiasmo de todos. A chegada da Companhia é acompanhada de entusiasmo geral, de uma perspectiva de crescimento e de prosperidade para todos, como podemos dizer que foi o período exatamente imediato ao golpe de 31 de Março de 1964, quando grande parte da população aplaudiu a ação tomada, a partir da cidade mineira de Juiz de Fora, pelo general Olympio Mourão Filho.

Passa-se um pouco de tempo e esse tio de sucesso, repentinamente, deixa a empresa e o interior, retornando para a capital, com a sua esposa. Nesse meio tempo, o pai do nosso protagonista e cunhado do executivo da empresa acaba sendo empregado pela firma e a expectativa na família é que assim como o tio que foi demitido que o patriarca também seria, mas, surpreendentemente, isso não ocorre e ele não só permanece empregado como também acaba ascendendo profissionalmente e se torna fiscal da companhia.

Durante a narrativa do livro fica demonstrado o papel especial que os fiscais da empresa tem na cidade. A alusão aos agentes fiscalizantes da lei, do mundo real, é visível. São aqueles que se põem em um pedestal para poderem, por meio da intimidação e da atemorização, obterem vantagens e favores sobre todos os demais. É o guarda, o bedel, o agente que recebe suborno, o policial que obtém facilidades de comerciantes ilicitamente. O pai do menino é o arquétipo disso tudo.

O tio exitoso sai de cena, doente, e a história passa a ficar centrada na família, com o pai fiscal, com o menino e com a mãe, preocupada com tudo o que se passa e hesitante com o futuro, mas que parece, durante toda a trama, sem autonomia, sem capacidade de ter ação própria.

Passa-se o tempo, o menino se torna mocinho e seu pai, após alcançar bons postos profissionais na firma acaba deixando o emprego por vontade própria, com o desejo manifesto de se tornar comerciante. Contudo, aquele que havia deixado o estamento burocrático passou a encontrar uma série de dificuldades para restabelecer a sua vida em uma nova dinâmica, afinal, a desconfiança da comunidade é visível com aquele que durante tantos anos foi o seu achacador-mór.

Temos aqui uma alusão clara daqueles que em tantas ocasiões, nos regimes autoritários do século XX, colaboraram com regimes de força, mas que em algum momento desertaram e tentaram encontrar um ponto de inflexão em suas vidas, abandonando as práticas violentas para buscar a realizar em uma vida simples e modesta. O escritor Flávio Gordon, em seu recente best-seller "A Corrupção da Inteligência" chamou isso de "Momento Kronstadt", apontando para uma importante revolta anti-bolchevique (a ideia de se remar contra a corrente da mentalidade revolucionária). Não mais tendo a força dos tempos em que era fiscal plenipotenciário da empresa, o Pai agora não tem a quem recorrer, até que é tragado pela mesma estrutura autoritária da qual fez parte e que ajudou a construir.

O cenário da cidade, com a chegada da Companhia, se transforma drasticamente, sendo cercada e dividida por altos muros, sobre os quais passam a se assentar urubus, que então se tornam elemento do convívio das famílias. Aquele que foi o sinal de mau agouro durante tantos anos passou a ser enquadrado nos moldes dos animais domésticos, como cães, gatos ou aves de gaiola. A presença dos muros, que passam a estabelecer limites claros na cidade, podem ser entendidos não apenas como uma referência à separação das pessoas, promovida pelo aparato tirânico, mas também como um instrumento da realidade de um mundo em processo de modernização, de individualismo, onde tudo passa a ser compartimentado e separado e o velho senso de comunidade acaba sendo perdido, incluindo o enfraquecimento das relações de vizinhança, tradicionalmente sempre muito presentes em todo o Brasil. Lembremos que o período em que, aparentemente, a obra se passa, é a época de modernização e grande surto de urbanização do país. Urbanização é modernidade e modernidade é separação, organização e individualização. Até os urubus, que haviam se convertido em bichos de estimação do povo, foram alvo da sanha burocratizadora dos fiscais da Companhia, que passaram a fiscalizar todos os animais que não fossem registrados e que não dispusessem de uma chapinha de identificação no pescoço.

O autor ainda, subliminarmente, denuncia a atividade restritiva do comércio, por parte das tiranias, que impedem que o Pai compre madeira em outra cidade, pois após retornar para o seu armazém em construção com as madeiras recém adquiridas fora do município, teve o seu carregamento apreendido pela Companhia, acabando por ser denunciado por contrabando sendo levado encarcerado pelos fiscais. Um fim sarcástico para alguém que por longos anos fez exatamente a mesma coisa com outras pessoas que ousavam viver livremente, mas sem se darem conta de que a sua liberdade ameaçava à tirania da Companhia.

Ao fim do livro um surpreendente desfecho: as pessoas começam a voar, para o total desespero da Companhia. A alegoria do voo faz alusão ao voo da imaginação e da individualidade, que não podem ser presas nem contidas por nenhuma autoridade desse mundo, a não ser que os indivíduos se deixem aprisionar pelos tiranos.

Acervo Estadão


REFERÊNCIAS: 

GOMES, Gínia Maria. Sombras dos reis barbudos: a representação alegórica da realidade. Porto Alegre: Revista eletrônica de crítica e teoria de literaturas - Nau literária. Vol. 01 N. 01 – jul/dez 2005 <acessado em 19/11/2017 http://seer.ufrgs.br/index.php/NauLiteraria/article/view/4830/2746>

GORDON, Flávio. A Corrupção da Inteligência. Rio de Janeiro: Editora Record, 2017.

VEIGA, José J. Sombras de Reis Barbudos. São Paulo: Círculo do Livro, 1973. 144 págs.

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