Diversos autores, ao longo da história, escreveram obras que tiveram como enfoque imediato a defesa da liberdade humana como valor fundamental e como princípio, que quando se faz ausente, mostra toda a sua necessidade para aqueles que passam a sofrer as privações advindas da tirania. José J. Veiga em "Sombras de Reis Barbudos" nos vem dar uma excelente demonstração de como a vida humana pode se tornar trágica em um ambiente onde a liberdade passa a ser constrangida.
Ambientada em alguma cidade do interior durante o período do Regime Militar, embora no livro não sejam citados nem o nome real da cidade (na ficção é Taitara) nem mesmo uma referência expressa sobre o período 1964-1985, podemos, no entanto, entender que a história se encaixa perfeitamente nesse contexto.
Lucas, um menino é o principal personagem e o narrador da história. Tudo ocorre quando uma grande firma chega na cidadezinha, trazida pela tio do garoto. Pela narração vemos o tipo do sujeito que saiu do rincão e foi pra cidade, onde prosperou no setor privado, voltando triunfante para sua terra, agora com os ares de novo e aclamado rei, atraindo a boa vontade e o entusiasmo de todos. A chegada da Companhia é acompanhada de entusiasmo geral, de uma perspectiva de crescimento e de prosperidade para todos, como podemos dizer que foi o período exatamente imediato ao golpe de 31 de Março de 1964, quando grande parte da população aplaudiu a ação tomada, a partir da cidade mineira de Juiz de Fora, pelo general Olympio Mourão Filho.
Passa-se um pouco de tempo e esse tio de sucesso, repentinamente, deixa a empresa e o interior, retornando para a capital, com a sua esposa. Nesse meio tempo, o pai do nosso protagonista e cunhado do executivo da empresa acaba sendo empregado pela firma e a expectativa na família é que assim como o tio que foi demitido que o patriarca também seria, mas, surpreendentemente, isso não ocorre e ele não só permanece empregado como também acaba ascendendo profissionalmente e se torna fiscal da companhia.
Durante a narrativa do livro fica demonstrado o papel especial que os fiscais da empresa tem na cidade. A alusão aos agentes fiscalizantes da lei, do mundo real, é visível. São aqueles que se põem em um pedestal para poderem, por meio da intimidação e da atemorização, obterem vantagens e favores sobre todos os demais. É o guarda, o bedel, o agente que recebe suborno, o policial que obtém facilidades de comerciantes ilicitamente. O pai do menino é o arquétipo disso tudo.
O tio exitoso sai de cena, doente, e a história passa a ficar centrada na família, com o pai fiscal, com o menino e com a mãe, preocupada com tudo o que se passa e hesitante com o futuro, mas que parece, durante toda a trama, sem autonomia, sem capacidade de ter ação própria.
Passa-se o tempo, o menino se torna mocinho e seu pai, após alcançar bons postos profissionais na firma acaba deixando o emprego por vontade própria, com o desejo manifesto de se tornar comerciante. Contudo, aquele que havia deixado o estamento burocrático passou a encontrar uma série de dificuldades para restabelecer a sua vida em uma nova dinâmica, afinal, a desconfiança da comunidade é visível com aquele que durante tantos anos foi o seu achacador-mór.
Temos aqui uma alusão clara daqueles que em tantas ocasiões, nos regimes autoritários do século XX, colaboraram com regimes de força, mas que em algum momento desertaram e tentaram encontrar um ponto de inflexão em suas vidas, abandonando as práticas violentas para buscar a realizar em uma vida simples e modesta. O escritor Flávio Gordon, em seu recente best-seller "A Corrupção da Inteligência" chamou isso de "Momento Kronstadt", apontando para uma importante revolta anti-bolchevique (a ideia de se remar contra a corrente da mentalidade revolucionária). Não mais tendo a força dos tempos em que era fiscal plenipotenciário da empresa, o Pai agora não tem a quem recorrer, até que é tragado pela mesma estrutura autoritária da qual fez parte e que ajudou a construir.
O cenário da cidade, com a chegada da Companhia, se transforma drasticamente, sendo cercada e dividida por altos muros, sobre os quais passam a se assentar urubus, que então se tornam elemento do convívio das famílias. Aquele que foi o sinal de mau agouro durante tantos anos passou a ser enquadrado nos moldes dos animais domésticos, como cães, gatos ou aves de gaiola. A presença dos muros, que passam a estabelecer limites claros na cidade, podem ser entendidos não apenas como uma referência à separação das pessoas, promovida pelo aparato tirânico, mas também como um instrumento da realidade de um mundo em processo de modernização, de individualismo, onde tudo passa a ser compartimentado e separado e o velho senso de comunidade acaba sendo perdido, incluindo o enfraquecimento das relações de vizinhança, tradicionalmente sempre muito presentes em todo o Brasil. Lembremos que o período em que, aparentemente, a obra se passa, é a época de modernização e grande surto de urbanização do país. Urbanização é modernidade e modernidade é separação, organização e individualização. Até os urubus, que haviam se convertido em bichos de estimação do povo, foram alvo da sanha burocratizadora dos fiscais da Companhia, que passaram a fiscalizar todos os animais que não fossem registrados e que não dispusessem de uma chapinha de identificação no pescoço.
O autor ainda, subliminarmente, denuncia a atividade restritiva do comércio, por parte das tiranias, que impedem que o Pai compre madeira em outra cidade, pois após retornar para o seu armazém em construção com as madeiras recém adquiridas fora do município, teve o seu carregamento apreendido pela Companhia, acabando por ser denunciado por contrabando sendo levado encarcerado pelos fiscais. Um fim sarcástico para alguém que por longos anos fez exatamente a mesma coisa com outras pessoas que ousavam viver livremente, mas sem se darem conta de que a sua liberdade ameaçava à tirania da Companhia.
Ao fim do livro um surpreendente desfecho: as pessoas começam a voar, para o total desespero da Companhia. A alegoria do voo faz alusão ao voo da imaginação e da individualidade, que não podem ser presas nem contidas por nenhuma autoridade desse mundo, a não ser que os indivíduos se deixem aprisionar pelos tiranos.
Acervo Estadão |
REFERÊNCIAS:
GOMES, Gínia Maria. Sombras dos reis barbudos: a
representação alegórica da
realidade. Porto Alegre: Revista eletrônica de crítica e teoria de literaturas - Nau literária. Vol. 01 N. 01 – jul/dez 2005 <acessado em 19/11/2017 http://seer.ufrgs.br/index.php/NauLiteraria/article/view/4830/2746>
GORDON, Flávio. A Corrupção da Inteligência. Rio de Janeiro: Editora Record, 2017.
VEIGA, José J. Sombras de Reis Barbudos. São Paulo: Círculo do Livro, 1973. 144 págs.
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